terça-feira, 21 de maio de 2013

Sem (ou cem) consciência (s)?

     A leitura de assuntos relacionados à neurociência e o contato com pessoas que apresentam disfunções cerebrais devido a traumas cranianos, uso de drogas, epilepsia refratária e síndromes demenciais nos colocam diante de alguns quadros tristes, alegres e outros interessantes. Recentemente, procurando artigos sobre níveis de processamento cognitivo e construção da consciência, reli algo sobre a habilidade de ver coisas não estando consciente delas. É a visão cega: quando uma pessoa, demonstrando consciência em perceber todos os estímulos, exceto os visuais, consegue desviar dos obstáculos a sua frente. Ocorre quando há lesões bilaterais do córtex visual primário do cérebro, onde a visão é experimentada conscientemente. Na visão cega, a capacidade de evitar tropeços e quedas é atribuída a região subcortical - provável vestígio de um sistema visual primitivo, cujo objetivo era simplesmente favorecer à sobrevivência e não apreciar as obras de Picasso (Carter, R. 2003). Entretanto, esse fenômeno sugere mais: que o pensamento, assim como a percepção sensorial, apresenta estágios ou níveis de processamento, mas nem todos conscientes.
     Diariamente produzimos uma quantidade imensa de pensamentos - dizem que entre 40 a 60.000 -, impossível de vivenciá-los, em sua totalidade, de forma consciente. Para otimizar o processamento de informações e, consequentemente, a adaptação e a sobrevivência da espécie, foi desenvolvido um tratamento diferenciado para os estímulos novos e repetitivos. Quando iniciamos um novo aprendizado - dirigir um veículo, por exemplo -, precisamos estar bem conscientes e atentos. Nas primeiras aulas temos que perceber vários estímulos (visuais, sonoros, táteis), planejar e decidir ações (ligar o carro, passar a marcha, acionar a seta, acelerar) e monitorar eventos (motorização do veículo, posicionamento em relação à via e aos outros, etc). Isto implica no funcionamento de várias regiões cerebrais (principalmente os lobos frontais), com uma ampla e dispendiosa atividade nervosa. Entretanto, à medida que o estímulo se repete e a aprendizagem é estabelecida, a resposta tende a ser facilitada, não necessitando mais de tanta concentração mental e, consequentemente, de todo aquele maquinário cerebral. O comportamento torna-se automatizado. Em geral, quanto mais desenvolvida a aprendizagem de um determinado procedimento ou assunto, menos concentrados precisamos estar para realizá-lo ou debatê-lo, respectivamente. Se assim não fosse, ao conduzirmos nosso veículo para o trabalho ou passeio, precisaríamos estar, todo dia, muito conscientes e atentos aquele conjunto de providências relativas à condução veicular. Imagine se acontecesse a mesma coisa com todas as atividades que fazemos cotidianamente e que achamos tão simples realizá-las (e são porque as fazemos "sem pensar"). Provavelmente na metade do dia já estaríamos bem desgastados mentalmente e a nossa aparência não seria uma pintura.  Porque é impossível processar toda a demanda diária de estímulos e respostas com o mesmo nível de consciência e prontidão mental.
      Na década de 90, LeDoux  já apontava para a existência de dois principais circuitos da emoção: o trajeto rápido, com um menor percurso neuronal entre o tálamo e a amigdala, que interpreta estímulos e desencadeia comportamentos emotivos sem a participação da consciência; e o trajeto lento, com um maior percurso de neurônios entre o tálamo e o córtex, com uma percepção detalhada e comportamentos mais elaborados. Segundo o pesquisador "não é necessário que saibamos exatamente o que uma coisa é para que saibamos que ela pode ser perigosa". Em outros tempos, num ambiente extremamente selvagem e imprevisível, se não fosse o trajeto rápido da emoção provavelmente a espécie humana seria encontrada apenas fossilizada ou em pinturas rupestres.
      A partir destes eventos - visão cega, comportamento automático e circuitos da emoção - fica caracterizada a  nossa capacidade de responder a estímulos sem estar plenamente consciente deles, ou melhor, fica evidenciada a atividade mental num espectro de consciência. Ou ainda como uma sobreposição progressiva de percepções, emoções, lembranças e decisões que, ao longo da evolução, nos proporcionou habilidades - como a de responder de forma rápida e precisa ("reflexos"), ter reações inesperadas em momentos de perigo extremo -, mas também limitações, como a exagerada programação de automatizar comportamentos, comprometendo a memória, e a vulnerabilidade de perder o controle e agir de forma desnecessariamente agressiva. Sem ignorar, endeusar ou demonializar, é possível tirar proveito desse aspecto ancestral de humanidade, lembrando de escutá-lo no silêncio e considerá-lo cotidianamente. Senão, teremos realmente uma visão cega.