domingo, 18 de novembro de 2012

Fazendo história

        Nas duas últimas vezes que fui ao cinema com a esposa, na expectativa de assistir a um bom filme, voltei extremamente frustrado - e até irritado -, diante das produções medíocres apresentadas.  Como frequentemente assistimos à sessão das 21 horas (período que geralmente estou concluindo as atividades para realizar uma outra prazerosa atividade  - dormir ), fico torcendo para que as horas perdidas do meu saboroso sono sejam compensadas com momentos de emoção e reflexão. Entretanto, neste último mês as escolhas foram terríveis, ao ponto de decidir voltar para a casa assim que terminou ... a pipoca (bem antes do final do filme). Bastante desconfiado - pensei até em não comprar a pipoquinha - resolvi nesta última quinta-feira arriscar novamente: comprei o bilhete, entrei na sala, sentei-me na H7, assisti... E foi fantástico! "De Pai Para Filho", um filme realmente arretado, e emocionante! Na biografia de Luiz Gonzaga, a pobreza, a discriminação, as frustrações, as dificuldades, o sucesso, o fracasso e o reencontro com o filho me fizeram até parar de mastigar para acompanhar o desenrolar de uma grande história. Além de ouvir belas canções, relembrar alguns fatos históricos e presenciar uma formidável interpretação do elenco. Fui lembrando também da minha adolescência, quando escutava as músicas do Gonzagão e dançava quadrilha nas ruas e nas escolas, "guardando as recordações" de onde passei e "dos amigos  que lá deixei". A vida de Luiz Gonzaga foi realmente uma grande história, digna de um grande filme, que teve como protagonistas a rudeza, a paixão e o perdão.
        Há algum tempo venho observando com maior interesse as histórias das pessoas e as mudanças de enredo ocorridas nas últimas gerações (ver postagem anterior - Parabéns). Ao assistir à biografia do maior cantor nordestino, bem como de outras pessoas anônimas (pacientes), imagino que certos eventos e comportamentos parecem ser importantes na construção de uma história. Por isso, desejo (e espero estar contribuindo) que meus filhos tenham mais que momentos agradáveis nos seus dias: que eles tenham experiências, pois acredito que estas contribuirão para a formação de alguns valores e atitudes que nortearão os seu caminhos. Que venham as alegrias e tristezas, mas que não falte paixão - pelas pessoas, mas também pelas idéias. E que, como Gonzaguinha, saibam perdoar e ver "que a vida devia ser bem melhor e será, mas isso não impede que eu repita, é bonita, é bonita e é bonita". 

domingo, 4 de novembro de 2012

Parabéns


         Na quarta-feira passada, 31 de outubro, fui comemorar com familiares os oitenta anos do meu pai. Embora eu não tenha testemunhado praticamente a metada de sua vida - quando eu nasci ele tinha 37 anos - sei que foram anos de muitas dificuldades: família de poucos recursos financeiros e muitos filhos (mais de 10), com uma mãe especializada nos cuidados maternos e um pai muito habilidoso nos números e nas palavras - orgulhosamente, foi um dos pioneiros no jornalismo alagoano -, mas que precisava trabalhar os três horários para sustentar a casa. Sendo o mais velho dos homens, a responsabilidade com as necessidades do lar foram precocemente assumidas pelo meu velho, que transbordava de disposição e compromisso familiar. Num ambiente com fartura de informações, entusiasmou-se progressivamente pelas leituras diversas, culminando nas graduações de Filosofia e Direito. Nos últimos quarenta anos os desafios e obstáculos continuaram, com significativas perdas (emocionais) e alguns ganhos, mas ele sempre enfrentando com um imenso senso de honestidade e responsabilidade - suas principais características. Sem falar da admirável e inquietante inclinação pelas coisas simples e naturais, e do desapego a ideologias e modismos.
         Tirando as peculiaridades e outras limitações pessoais, a história de meu pai é semelhante à de muitos pacientes idosos por mim atendidos: um início de vida com muitas restrições, em famílias numerosas e geralmente pobres, longos momentos de sofrimento, participação precoce nos serviços de casa, forte espírito de coletividade entre os familiares, a honestidade como vaidade e o sucesso obtido de forma lenta e gradual. Entretanto, num outro grupo de pacientes, tenho escutado o relato de experiências familiares bem diferentes: lares com poucas crianças, com a geladeira e armários abarrotados de alimentos, parentes e funcionários geralmente tentanto satisfazer imediatamente a maioria dos desejos dos menores, um esforço acentuado para manter o filho alegre e impedir o seu sofrimento, pouca (ou nenhuma) colaboração das crianças e adolescentes nas atividades caseiras, a colocação da inteligência e da competitividade como objetivos maiores na formação da prole, e o ato de comprar adquirindo status de principal fonte de prazer.
        Pelo que percebo - e dizem os especialistas - as significativas mudanças econômicas ocorridas nas últimas décadas no país vêm, gradativamente, modificando o nosso comportamento. Embutidos nos novos produtos e serviços, estão os recentes valores sociais: a intensidade, a velocidade e a comodidade. Na relação com as pessoas, objetos e acontecimentos, temos sido influenciados a considerar como positivas as vivências intensas, rápidas e cômodas. Mas, qual o verdadeiro impacto destas modificações no nosso comportamento? Quais habilidades e dificuldades serão fortalecidas? A que tipo de distúrbios ou transtornos estaremos vulneráveis com tais alterações? Contribuirão para favorecer a serenidade e sabedoria, ou a ansiedade e a angústia? Com todos os exgeros e equívocos, parabéns a você meu pai, e a sua geração!
 

     

domingo, 7 de outubro de 2012

O grande encontro

      Quando estamos criança, ficamos de cara feia ou choramos quando nossos pais nos proibem de realizar todos os nossos desejos e fantasias. Na adolescência, mais fortes e inteligentes, discordamos de muitas idéias e atitudes dos coroas, chegando ao ponto de discutirmos e até nos revoltarmos; além disso, nos sentimos extremamente entediados com a lentidão dos dias, querendo que o tempo passe rápido para chegar a tão esperada maioridade e fazermos muitas coisas diferentes. Depois de uma longa espera estamos adultos e com liberdade de escolhermos nossos caminhos: de preferência que nos levem a experiências intensas e variadas. É a fase em que dispomos de um corpo rígido e uma mente flexível.
      Quando aprofundamos um relacionamento amoroso, progressivamente a outra pessoa começa a questionar e reclamar de certas atitudes nossas que não percebemos - mas que também nos desagradavam quando identificávamos em nossos pais. Com a chegada dos filhos, mesmo com os inúmeros livros lidos e entrevistas assistidas, sentimos a necessidade de repetir com os rebentos vários ensinamentos vividos na nossa infância, tornando-nos agora seus ardorosos defensores. Estando na meia idade, envolvidos em muitas atividades e responsabilidades, inclinamo-nos a ficar fortemente automatizados e pouco flexíveis. Se não aprendermos com as situações da vida, orientação religiosa ou com psicoterapia, caminhamos gradativamente para o enrijecimento, incorporando comportamentos que há algum tempo nos incomodavam . É a época em que o tempo passa mais rápido: tão veloz que chegamos na terceira idade sem perceber. Percebemos então as várias mudanças ocorridas em nós e no ambiente e, se não encontrarmos sentido nas atividades e ocupações, os ponteiros do relógio vão se arrastar lentamente. É o momento que ficamos mais apegados  - e até dependentes - a conceitos, sentimentos e hábitos antigos, alguns inadequados. É uma fase delicada porque, ao contrário da juventude, tendemos a ter um corpo maleável e uma mente rígida ("cabeça dura"); a nos relacionar mais intensamente com os conceitos do que com os estímulos do ambiente. Os valores podem petrificar e dificultar muito a nossa caminhada, tornando-a desnecessariamente pesada e dolorosa. Além disso, nossos filhos ficarão irritados, ansiosos ou tristes diante das nossas teimosias e, provavelmente, repetirão o mesmo padrão de comportamento com as futuras gerações.
      Não desperdicemos tempo e oportunidade; vamos interagir e compartilhar o que temos, seja a experiência ou a vivacidade, para seguirmos renovados e com alguma serenidade, pois as épocas e os costumes são diferentes, mas o percurso é o mesmo.
 

domingo, 23 de setembro de 2012

De olhos bem abertos

      Quando fui estudante de psicologia fiquei muito entusiasmado com as leituras de PNL (Programação Neurolinguística), principalmente com o estudo dos movimentos dos olhos, que indicavam recordação, criatividade e até mentiras. Apesar do meu entusiasmo inicial ter se deteriorado por não encontrar sustentação nas publicações científicas, continuei olhando... Em 2000 fui para Porto Alegre fazer pós-graduação em Neuropsicologia, em um programa de cirurgia de epilepsia no Hospital São Lucas. Os pacientes candidatos à cirurgia geralmente apresentavam lesões no lobo temporal mesial e tinham como principal queixa cognitiva o esquecimento - pela importante participação do hipocampo na retenção de estímulos a longo prazo. Durante as avaliações  observei inúmeros pacientes demonstrarem o que parecia ser um padrão de movimento ocular durante a evocação nos testes de memória. Por volta de 2004 assisti a uma reportagem sobre a EMDR -Dessensibilização e Reprocessamento através dos Movimentos dos Olhos -, técnica psicoterapêutica inicialmente aplicada em pacientes com stress pós traumático e atualmente utilizada em outros transtornos. Embora não tenha formação neste método, a leitura de alguns artigos serviu para aumentar a convicção de que a movimentação ocular tem bem mais utilidades do que a vista alcança. Até quando dormimos nossos olhos se movimentam e ajudam a mente (fase REM do sono, caracterizada por movimentos rápidos dos olhos, intensa atividade cerebral, ocorrência de sonhos, relaxamento muscular acentuado e consolidação da memória). Ao longo dos últimos anos, avaliando o desempenho de idosos nos testes de memória declarativa, continuo a observar diariamente uma sugestiva relação entre os movimentos que os olhos executam quando a pessoa está tentando se lembrar, e os resultados alcançados nos instrumentos. Sem tempo e estrutura para fazer pesquisa, tenho então tentado acompanhar a literatura sobre o assunto e, felizmente, vários trabalhos tem apontado que os movimentos bilaterais dos olhos efetivamente têm efeito na memória (Parker A., Dagnall N., 2012, 2009; Samara, Z., Elzinga, B.M., 2011; Gunter, R.W., Bodner G.E., 2008; Ehrlichman H., Micic D., Sou A., Zhu J., 2006). Segundo os artigos, os movimentos que os olhos realizam quando uma pessoa busca uma recordação servem para aumentar a ativação da região pré-frontal, estimulando ainda a interação entre os hemisférios cerebrais. Como consequência, um melhor desempenho da memória de longa duração (episódica). As publicações afirmam que a evocação de um episódio é melhorada quando a pessoa realiza tais movimentos (quando comparada com a ausência deles); que a memória das crianças e adultos são mais precisas quando precedidas desta coreografia ocular. Já existem até equipamentos de rastreamento ocular (eye tracker), que são utilizados no estudo de dificuldades cognitivas - esquecimento, dislexia -, bem como no desenvolvimento de sites, disposição adequada de produtos nas prateleiras de supermercados e vitrines de lojas. Os olhos já são utilizados ainda para comandar (vídeogames e computadores que reconhecem movimentos oculares e os transforma em comandos).
      Embora não seja possível identificar a mentira no olhar de uma pessoa - como propagavam alguns palestrantes de PNL -, há evidências que indicam que os olhos não servem apenas para captar estímulos visuais (convertendo-os em impulso nervoso) e expressar a emoção no olhar: seus movimentos ativam áreas cerebrais contralaterais, favorecendo o funcionamento cognitivo. Mas será que a partir  dos movimentos oculares é possível inferir sobre o desempenho da memória episódica de um indivíduo? Até que ponto o movimento dos olhos reflete o movimento (dinâmica) da mente?  Havendo movimento mental, haverá consequentemente um espaço cognitivo? Com passos geralmente lentos e curtos - apesar de firmes - a ciência encontrará as respostas para estes e outros questionamentos. Até lá irei acompanhando as pesquisas - tentando implementar alguma - mas, como não estou num ambiente exclusivamente científico, não posso deixar de dizer: os olhos são realmente as janelas da alma, ou seja, são a interface entre ambientes e realidades distintas; a abertura que permite a passagem de elementos... Por enquanto é melhor fechar, ou melhor, parar por aqui.

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Memória de trabalho

      Quando uma colega - Karine Martins - me convidou para apresentar uma palestra na V Jornada Alagoana de Neuropsicologia, rapidamente me lembrei das crianças e adultos do consultório que reclamam da falta de memória (na escola, no trabalho e nas atividades cotidianas). Mas não estou falando dos grandes esquecimentos  - do que viu e ouviu -, mas sim dos pequenos (nem por isso desagradáveis) lapsos de memória. Aqueles que ocorrem quando estamos lendo um texto e deixamos a informação escapar, necessitando reiniciar a leitura, ou quando tentamos manter um número ou uma palavra na consciência para utilizarmos em seguida e a perdemos rapidamente. Por isso resolvi falar sobre a "memória de trabalho e o desempenho cognitivo", a fim de divulgar as características do seu funcionamento e os incômodos de um déficit nas atividades diárias. Foi aí também que percebi que, mesmo tendo escrito várias postagens sobre esquecimento, não dei atenção que a memória de trabalho merece.
      A quantidade de estímulos detectados pelos receptores sensoriais (olhos, ouvido, pele, músculos) e direcionados às regiões encefálicas é muito grande. A cada segundo, inúmeros dados visuais, auditivos, táteis, cinestésicos são sentidos, porém nem todos são percebidos (a percepção é a interpretação e compreensão consciente de parte do que foi captado pelos sentidos). Mesmo com esta primeira triagem efetuada pelo cérebro humano, o fluxo de informações é contínuo na vigília, oriundo das aulas diversas, informes dos letreiros, faixas e outdoors da cidade, momentos de conversas com familiares e amigos, tarefas e providências realizadas durante o período de trabalho, leitura de livros e revistas, conteúdo dos programas da tv (jornais, novelas, filmes), detalhes dos transeuntes que circulam no campo visual, informações da internet e muitas outras fontes. Durante as 16 ou 18 horas que passamos acordados, somos expostos a uma quantidade exagerada de informações, e não há como fixá-las totalmente. Ou melhor, não é necessário memorizar tudo, porque nem tudo é importante.
      A mente humana disponibiliza, principalmente, dois tipos de memorização: longo e curto prazos. São elas a memória declarativa (ver outras postagens anteriores) e a de trabalho, respectivamente. Na memória de trabalho (MT) o importante é manter uma pequena quantidade de estímulos disponível; lidar com alguns pedaços de informação simultaneamente; operacionalizar e proporcionar o trabalho mental. Dito de uma maneira diferente, é a nossa mesa de trabalho; "local" onde dispomos o material, nos debruçamos e trabalhamos. Em seguida, colocamos o refugo no lixo, limpamos a mesa para um próximo serviço. Quanto maior a bancada, mais material podemos organizar sobre ela e um trabalho de maior dimensão poderá ser realizado. Por outro lado, quanto menor, mais limitada a capacidade de manipulação dos elementos e, consequentemente, menor produção (poderíamos ainda chamá-la de "pulmão mental",  por proporcionar o fôlego necessário ao mergulho cognitivo - quanto maior o fôlego, mais profundo podemos ir na atividade e mais tempo conseguimos permanecer submersos). A memória de trabalho é então a habilidade cognitiva que nos possibilita assistir a uma aula, ouvir o professor e manter suas explicações encadeadas e disponíveis; propicia a realização de um cálculo mental, visualizando os números e as operações aritméticas no seu esboço visuoespacial; na leitura, sustenta a fixação das palavras até a finalização da frase, bem como da ideia, até o término do parágrafo, sem perder o fio da meada;  numa reunião de trabalho ou assistindo ao filme nos mantém prontos (com o auxílio da atenção) para, simultânea e repetidamente, escutar e ponderar; na necessidade de gravar um número de telefone - na ausência de um caderno -, essa memória utiliza sua alça fonológica e "anota" os números temporariamente (se não utilizarmos outras estratégias para transferir a informação da memória de curta duração  para a memória declarativa ou de longa duração, o conteúdo será "descartado na lixeira", esquecido - como o nome de uma pessoa que acabamos de conhecer). Na memória de trabalho a informação será eterna enquanto durar a atividade mental  - pelo menos é o que deve acontecer.
        Algumas pessoas porém demonstram restrições na memorização transitória, provavelmente decorrentes de problemas genéticos e/ou ambientais. Espectro autista, transtorno de atenção, dislexia, retardo mental, transtornos ansiosos e afetivos são alguns exemplos de distúrbios que podem manifestar dificuldades nesse tipo de memória. Nestes casos, o déficit na MT geralmente resulta em comprometimento importante na aprendizagem. Mas, mesmo nas crianças e adultos que não apresentam transtornos, a atenuação do seu funcionamento poderá reduzir o desempenho geral, comprometendo a produtividade na atividade acadêmica, no exercício profissional e nas providências cotidianas. A memória de trabalho é um dos principais termômetros do funcionamento mental; ela também é protagonista no cenário cognitivo e ...  sobre o que eu estava falando mesmo?

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Olimpíadas 2012, 2013, 2014...

      Nestes últimos 15 dias participei de uma maratona ... de atividades. Além das habituais tarefas e compromissos profissionais, familiares e sociais, tornei-me um telespectador assíduo das Olimpíadas de Londres, acompanhando, por inúmeras horas, as competições de Futebol, handebol, voleibol, atletismo, hipismo, basquete, iatismo e ginástica. E não foi fácil pois, assim como os atletas, também tive que suar bastante, planejando os meus dias (para conciliar e incluir na minha agenda diária o máximo de jogos), ficando atento no consultório às manifestações de vitória vindas das ruas (gritos, buzinaço, fogos), procurando ser eficiente na resolução das providências e mostrando rapidez no retorno ao lar. Em casa, tive que desagradar a esposa, ao tumultuar um pouco - acho - os necessários hábitos cotidianos, alimentando-se apressadamente e convocando os filhos para a bagunçada torcida no sofá. Além disso, por duas semanas sacrifiquei heroicamente a minha sagrada siesta  das 13h, por coincidir com o horário de jogos importantes. Até os rabiscos de que gosto de realizar aos domingos foi comprometido pela minha dedicação ao evento. Mas, valeu a pena! Foi um show de imagens e emoções!
     Como ex atleta de esporte amador, tendo praticado handebol há 25 anos, assistir aos jogos me fez reviver os torneios participados, a ansiedade pelos jogos, o espírito de união do time, a angústia dos momentos decisivos, a "força" que vinha dos gritos da torcida amiga, a tristeza das derrotas e o êxtase das vitórias. Embora bem distante da qualidade técnica dos atletas olímpicos e do glamour de Londres, foram momentos inesquecíveis! Momentos iniciados aos 12 anos, como uma brincadeira nas aulas de educação física numa escola pública, seguindo-se com os primeiros arremessos desajeitados na escolinha de handebol, suportando a reserva por um ano inteiro, até ser promovido como titular do time a partir do ano seguinte. Até os meus 18 anos, foram incontáveis dias de treinamento - ocorridos ao menos três vezes por semana -, com exercícios físicos repetitivos e exaustivos, com dores nas pernas e braços ao despertar, lesões no joelho e a conciliação com os estudos escolares. Quando nas competições em outros estados, ficava em alojamentos com acomodações improvisadas nas escolas, dormindo em colchões no chão e malas espalhadas pela sala de aula, jogando até duas partidas diárias, preenchidas com empurrões, pancadas e cotoveladas dos adversários, gritos do treinador, tensão constante, sede, cansaço...  Tudo isto em busca por grandes medalhas: força, destreza, compleição física, status e, é claro, o delicioso sabor da vitória.
     Mas a riqueza da prática esportiva ultrapassa a utilidade de sublimar tendências humanas primitivas: através do doloroso treinamento - físico e emocional -, favorece o indivíduo a persistir diante da preguiça ou do cansaço, a suportar o sofrimento (sabendo que a dor diminui em alguns dias, após algumas compressas) e não se entregar facilmente com o desânimo. Assistir às Olimpíadas de Londres foi realmente empolgante: pelo desfile da bela variedade humana, na sua forma e comportamento; pelo espetáculo de força e de precisão; e pela valorização global de uma atividade humana naturalmente terapêutica, que tem a possibilidade de nos tornar mais hábeis nos movimentos do corpo e da alma.

domingo, 22 de julho de 2012

O terrível esquecimento

   
      Em 2009 realizei uma avaliação neuropsicológica numa pessoa de 50 anos, que reclamava de um intenso problema de memória. Trabalhando como executiva de uma grande instituição, viajando constantemente, participando de várias reuniões e cursos, afirmava que seu desempenho estava desmoronando: esquecendo dos compromissos agendados, dos eventos frequentados, das decisões tomadas e das novas informações adquiridas. Apesar de também manifestar o humor bastante deprimido - chorando constantemente, com uma perspectiva pessimista da própria saúde e demonstrando isolamento social - e do consequente prejuízo cognitivo (alterações da atenção, memória de trabalho e funções executivas, principalmente), os dados da avaliação indicavam deterioração cognitiva importante, sendo então encaminhada para a geriatria.
      Esta semana ela retornou, dizendo que, apesar da melhora no quadro geral, o esquecimento persiste. Com um exame de ressonância magnética revelando atrofia importante nas regiões temporais mesiais do cérebro (fundamentais na memória de longa duração), disse ainda que foi aposentada por invalidez naquele ano, após iniciar o tratamento medicamentoso no mesmo período - interrompido há algum tempo. Embora demonstrando momentos de lucidez, com o ânimo adequado e descrevendo alguns fatos ocorridos neste ínterim, inúmeras lacunas na evocação, reduzida fluência verbal e significativa imprecisão temporal dos acontecimentos foram observadas. Além disso, ao me fixar no seu rosto, percebi algo comumente encontrado em pacientes demenciados, que definiria como um "olhar alheio" e que, mesmo sem fundamento científico e possivelmente contaminado pela minha subjetividade, associo a um possível esvaziamento cognitivo. Seus familiares, tentando esquecer o problema e procurando levar uma vida normal com ela, "estimulam-na", pedindo repetida e até asperamente para se esforçar e se lembrar das coisas. O marido, visivelmente dedicado e companheiro, envolto de angústia, deixou escapar que não consegue aceitar a situação da esposa. Os filhos, segundo ele, embora amorosos, também se irritam com os rotineiros esquecimentos da mãe. E a paciente, interrompida na sua trajetória de experiências - profissionais, familiares, sociais - vai preenchendo seus dias com o que lhe resta de memória. Como se não bastasse a perda do trabalho realizador, das aspirações, do convívio com as pessoas, das lembranças da própria história, está perdendo algo essencial: o poder de decidir e, possivelmente, a felicidade (Felicidade é poder! - postagem do dia 07/08/2011).
      Apesar da alta escolaridade (pós-graduada), desempenho multifuncional (profissional, mãe, esposa, dona de casa) e das relações afetivas terem possibilitado o desenvolvimento de uma exuberante e vantajosa reserva cognitiva, o processo neurodegenerativo progride... E, com ele, a deterioração do que foi construído ao longo da história - lembranças, conhecimentos, hábitos, virtudes, defeitos. A demência é a perda da vida, em vida. Mas, felizmente, com o avanço da medicina, já é possível diluir essa perda por vários anos, e até décadas, aumentando a quantidade e a qualidade de vida dos pacientes. Para isso, é fundamental o diagnóstico precoce e a manutenção do tratamento, porque o processo é irreversível e progressivo. Que progressivo continue sendo também o conhecimento científico sobre as síndromes demenciais para que, num futuro próximo, histórias não sejam drasticamente interrompidas e que não seja destruída a mais valiosa lembrança do ser humano, sua individualidade.

domingo, 8 de julho de 2012

"Partícula de Deus"

                         


   Aproximadamente às 20:30h desta última quarta-feira, dia 04 de julho, após tomar uma quente e saborosa sopa  de legumes no jantar, fui me deitar preguiçosamente no sofá da sala, procurando um programa de televisão interessante e ameno, compatível com a despedida do dia. Sem opções e maior interesse, coloquei no rotineiro noticiário da noite... quando o entusiasmo do apresentador me fez sentar: era o anúncio da observação inédita de uma partícula subatômica, realizada pelo Centro Europeu de Pesquisa Nuclear, com grande probabilidade de ser  o "bóson de Higgs", apelidado de " partícula de Deus". Mesmo leigo no assunto, a euforia dos cientistas na divulgação dos resultados iniciais e, principalmente, as lágrimas do britânico Peter Higgs no auditório, quase cinquenta anos após a idealização da teoria, deixaram-me realmente emocionado. Que bela fotografia! Levantei imediatamente e, na internet, vi que a tal partícula daria origem à massa de todas as demais partículas e estava sendo perseguida pelos cientistas ao longo das últimas décadas. Parece que esta era a pesquisa mais importante que vinha sendo realizada pelo acelerador de partículas - LHC -, um aparelho construído ao longo de 27 quilômetros, entre a França e a Suíça, considerada a máquina mais poderosa do mundo. Com a mais alta tecnologia e os mais sofisticados instrumentos, o LHC é capaz de fazer colidir prótons (partículas que formam o núcleo de um átomo)  - para os mais amedrontados (não especialistas),  o acelerador poderia até gerar um buraco negro e destruir a terra.
Mas, mesmo diante da complexidade do maquinário e do sucesso da descoberta - já candidata ao Prêmio Nobel -, repito que a minha alegria resultou mais da felicidade demonstrada pelo pesquisador aposentado de oitenta e três anos, Peter Higgs. Alguém que em 1964, sem o aparato tecnológico atual, concebeu a hipótese vigente, utilizando basicamente sua mente, seu cérebro: um equipamento com mais de 100 bilhões de unidades funcionais, conectadas em redes, com praticamente infinitas possibilidades, funcionando durante as 24 horas, por mais de 25.000 dias (equivalente a 70 anos), fazendo uso principalmente de oxigênio e glicose e, mesmo sem sensores ultra-sensíveis, consegue realizar um diagnóstico adequado da realidade, não só "vendo" estruturas invisíveis, mas também fenômenos do passado e do futuro, ocorridos próximos ou anos-luz de nós, interna ou externamente, de maneira concreta ou abstrata. Esta sim é a máquina mais poderosa do mundo; na imensidão do universo, é realmente uma partícula divina! É o tipo de notícia que entusiasma e aquece por dentro, como a sopa.

domingo, 1 de julho de 2012

Ganhamos!


     Extremamente cansado e rouco, cheguei há duas horas de uma viagem de três dias, junto com a família, onde acompanhamos o campeonato de handebol do nosso primogênito, em Estância, Sergipe. No retorno, enquanto todos dormiam, eu dirigia, procurando o que olhar às margens da rodovia, para espantar o sono que me rondava. Flash dos inúmeros jogos assistidos, da gritaria dos familiares na torcida, da final disputada hoje pela manhã e da premiação de campeão recebida me ajudaram muito a manter o foco na estrada. Sentindo ainda a alegria dos acontecimentos vividos, fui recordando o meu tempo de atleta: também jogador de handebol, lembrei de alguns torneios e viagens, da bagunça nos alojamentos, das partidas eletrizantes, das arquibancadas repletas, dos companheiros, das derrotas e das vitorias. Ótimas lembranças, de grandes e inesquecíveis momentos. De volta ao presente e faltando ainda algumas centenas de quilômetros para finalizar a viagem, comecei a pensar sobre algo que me deixou preocupado na competição: em vários times, o número de pessoas no banco de reservas era reduzido. Do nosso lado não era diferente e, até o goleiro, que disputou o torneio em duas categorias - juvenil e cadete -, não tinha um substituto. Se tivesse ocorrido uma lesão durante os jogos, os dois times estariam bem encrencados. Nos intervalos dos jogos, conversando com alguns atletas e pais, disseram que, em certas escolas particulares, o número de estudantes que participam de esportes está diminuindo. Uma triste realidade que, infelizmente, venho percebendo também em Maceió. Obcecados exclusivamente pela formação acadêmica, determinados colégios vêm colocando a prática esportiva como atividade de segunda classe, principalmente no ensino médio. Será que desconhecem que o exercício físico melhora o desempenho mental, como  a atenção, memória, orientação espacial e funções executivas, por estimular a sinaptogênese (formação de novas sinapses nervosas) e angiogênese (produção de novos vasos) em áreas cerebrais relacionadas com a aprendizagem, como o hipocampo? Sem falar do extraordinário aprendizado emocional que favorece, aumentado a tolerância à frustração e o controle da impulsividade, desenvolvendo estratégias para lidar com a ansiedade, aprendendo a trabalhar em equipe, respeitando normas e regras, mantendo-se persistente numa meta e suportando realizar tarefas repetitivas (disciplina).
      Proporcionar, estimular e valorizar a educação física e o esporte em crianças e adolescentes é enriquecer suas histórias com experiências, algo que vem faltando na vida destas pessoas, embora bastante fortalecidas de tecnologia e informações. Na família, sozinhos ou com um único irmão, não exercitam vigorosamente a conciliação e o espírito coletivo; alguns pais, muito ansiosos ou desinteressados, oferecem-lhes um ambiente familiar pouco desafiador e bem diferente do mundo lá fora; cada vez mais confinados em apartamentos, não exploram os espaços que os quintais disponibizavam; com medo da violência, não correm na rua, nem são premiados com as aventuras no bairro; com tanto entretenimento virtual, estão suando menos; na sala de aula, o professor vem progressivamente perdendo a autoridade e o comprometimento, deixando  os alunos sem referencial. Apesar do discurso que tal processo já ocorreu em vários países desenvolvidos (também com incremento de preocupantes alterações comportamentais), é importante analisar os ganhos efetivos de uma preparação escolar essencialmente informativa. A vitória então seria obtida não apenas com o acesso rápido a uma boa faculdade, através de um treino técnico exaustivo (informações), mas também com o desenvolvimento tático, incluindo habilidades de autoconhecimento, empreendedorismo e resiliência, fundamentais para um sucesso progressivo e sustentável. De que adianta preparar um aluno para ser exclusivamente um grande competidor em notas escolares, com uma exuberante musculatura acadêmica, fazê-lo subir o pódio de um concorrido curso e, após alguns anos, ele iniciar uma maratona de frustrações e limitações, envolvendo a impulsividade, ansiedade e depressão? Isso não quer dizer que o handebol, basquete ou a natação deixem o atleta inatingível física e mentalmente, mas que provavelmente - junto com outras atividades familiares, religiosas, sociais, culturais - enriquecerão a formação do indivíduo, conferindo a ele um repertório maior de experiências e conduzindo ao amadurecimento: esta sim, uma das maiores medalhas que podemos conquistar!

domingo, 24 de junho de 2012

Precisa-se de explicações

Depois de vários anos, uma mãe me procurou no consultório para reiniciar a avaliação com seu filho que, desde aquela época - com três anos de idade -, já apresentava um comportamento atípico. O garoto retornou esta semana, após sete anos de sucessivos tratamentos, mas com pouco progresso acadêmico e social, segundo a genitora. Emocionada, disse que estava muito angustiada, não só pelo comprometimento dele na aprendizagem e no convívio com os pares, mas, sobretudo, pela falta de informações esclarecedoras e pela ausência de diagnóstico do seu filho. Mesmo atuando na área da saúde e procurando diariamente conhecer os transtornos de aprendizagem, escutar este relato, sendo pai também de uma criança especial com diagnóstico ainda indefinido, fez com que eu compreendesse perfeitamente o sofrimento da mãe. A informação, por pior que seja, confere uma dimensão à situação, ou seja, um tamanho do que se tem a enfrentar. Na ignorância, por não termos o conhecimento, o problema não tem limite: não sabemos onde ele começa e onde termina. Talvez por isso geralmente a informação obtida proporciona, em algum momento, a sensação de segurança e, a sua ausência, mal estar. Não há como negar, precisamos muito de informações, desde aquelas que atendam as necessidades mais imediatas (diagnóstico de doença, definição da melhor opção na compra de uma casa ou automóvel, seleção de pessoas qualificadas para o serviço, desenvolvimento de práticas econômicas sustentáveis), até as necessidades mais abstratas (escolha de valores morais, existenciais e transcendentais).
        De acordo com as características individuais e da sensibilidade de cada um, procuramos conhecer os fenômenos que ocorrem próximos ou distantes de nós. No cotidiano, diante de eventos pessoais (tristeza persistente, doenças, acidentes, prejuízo financeiro), sociais (guerras, crise financeira, governos ditatoriais), naturais (aquecimento global, extinção de espécies) e cósmicos (expansão do universo, matéria escura, buracos negros e de minhoca), procuramos os jornais, revistas, livros, amigos, especialistas e líderes espirituais para amenizar o desagradável desconhecimento. Quando não conseguimos, frequentemente ficamos ansiosos ou angustiados (pessoalmente, é muito raro não questionar o porquê, ao amanhecer acentuadamente mais animado ou irritado, quando presencio o sepultamento de um ente querido ou amigo, ao assistir ao noticiário da morte de mais de duzentas mil pessoas na Indonésia - tsunami -, quando informado da queda de uma enorme árvore que matou um jovem motorista num dia chuvoso, ao ler nos jornais os frequentes escândalos políticos de corrupção...). Somos tão necessitados de informação que algumas vezes adquirimos conteúdos até por imitação. Somos tão sedentos de dados que, mesmo sendo agricultores, cientistas ou religiosos, utilizamos para as nossas decisões, conscientemente ou não, em maior ou menor intensidade, todas as formas de conhecimento: empírico, filosófico, teológico e científico. Porque é mais confortável ter uma certeza duvidosa do que uma dúvida certa.
        Porém, em muitas situações, que envolvem relação entre pessoas - marido e mulher, pais e filhos, professor e aluno, padre e fiel, profissional e paciente -, ser informado, ou seja, tomar conhecimento de algo não é suficiente para sentir-se confortado e compreender a realidade. Mais do que informar, é fundamental explicar: personalizar a informação, adaptá-la às características do outro, ter o compromisso de se fazer entender e de clarificar. A informação é impessoal, a explicação não. E justamente nos períodos de angústia - como daquela mãe do paciente - que precisamos mais de explicações do que informações. É o que eu vou tentar fazer com ela, mesmo sabendo que, para muitas indagações, não existirão explicações...
     
     

domingo, 10 de junho de 2012

Ilusões

      Ontem pela manhã estava na loja de um amigo de sela, conversando sobre algumas dificuldades que envolviam o tratador dos nossos cavalos quando, inesperadamente, ele me convidou para conhecer um produto diferente. Por ser proprietário de uma padaria, fiquei imaginando que seria um novo tipo de pão ou  bolacha que acabara de lançar mas, quando me apresentou uma terceira pessoa, pedindo para que fosse me mostrar a novidade, pensei: acho que já vi este filme antes. Com a chegada de um outro amigo nosso, fomos para o escritório, onde os divulgadores realizaram os preparativos, ligaram o computador e começaram a demonstração: tratava-se da divulgação de uma bebida que, segundo a extensa exposição, tinha na composição apenas ingredientes naturais, em várias versões - para o emagrecimento ou como suplemento energético. Destacaram que, além de consumir  um alimento saudável, o cliente teria ainda a grande oportunidade de ganhar dinheiro, sendo um distribuidor do produto. Sentado na cadeira, observei que a estratégia de marketing iniciou com uma refinada apresentação visual do apresentador, além de um discurso emocionante e cuidadoso com as palavras, "fundamentado" com informações de revistas semanais e noticiários, ilustrado com gráficos coloridos, fotos de celebridades e frases aspeadas. Mas, sem dúvida, o grande finale ficou por conta das imagens que mostraram o ganho financeiro progressivo, premiações com viagens e presentes, novas amizades e a possibilidade de se tornar um milionário, ser uma pessoa de sucesso e feliz - the end. É, realmente eu já tinha visto este filme antes, com produtos e personagens diferentes, mas com a mesma expectativa e euforia iniciais. Durante a reunião, quando perguntei sobre a existência de pesquisas científicas que indicassem o benefício do produto, a resposta que tive foi que não havia evidências, mas que os efeitos na saúde seriam sentidos durante o seu uso. Destoante da versão hollywoodiana assistida, o enredo se mostrou bem diferente para os meus conhecidos que seguiram esta trilha no passado, não conseguindo realizar o grande sonho americano. Por isto, saí da sessão preocupado com o meu amigo, um jovem trabalhador, responsável e correto nas suas atitudes, que desempenha uma atividade profissional desgastante - comércio -, mas que está deslumbrado com um novo script de vida, que promete maior remuneração e menor carga horária de trabalho. O seu entusiasmo me intimidou, inicialmente, a convidá-lo a fazer uma pesquisa rápida na web sobre vendas em pirâmides e empresas de marketing multinível - MMN - (Quem ganha? Por quanto tempo? A que custo?), com o objetivo de fazer uma crítica mais lúcida do empreendimento. Mas, escrevendo estas linhas, resolvi correr o risco e trocarmos uns emails sobre o assunto, tentando distinguir ficção e realidade da propaganda, mas também da minha observação.
      Apesar de acreditarmos que em muitas situações diárias utilizamos uma percepção mais racional (ou menos emotiva?) e, por isso, mais aproximada da realidade (fazendo uso de dados objetivos, analisando a relação custo/benefício, considerando as probabilidades e as experiências anteriores), em outros momentos certamente nossos medos e desejos nos fazem "esquecer" as evidências contrárias, dando-nos a certeza  da decisão - seja na descoberta de um negócio fabuloso, no relacionamento com uma pessoa extraordinária, na compra de algo incrível ou na aquisição de um conhecimento esclarecedor. São distorções que aumentam ou diminuem certos aspectos da percepção, de acordo com as motivações pessoais mais relevantes. São as inevitáveis, agradáveis ou dolorosas ilusões. E, geralmente, onde há ilusão, há convicção: nos mais otimistas, que tendem a negligenciar os obstáculos, interpretando até como comédia os acontecimentos desagradáveis, e nos pessimistas de plantão, que desqualificam as vitórias, repetindo e destacando as cenas dramáticas das experiências. Quanto mais tristes - ou mais alegres - nos sentirmos, provavelmente mais iludidos e distantes da realidade estaremos. Mas, quem disse que precisamos estar sempre tão perto dela? Assim como assistimos aos filmes e nos emocionamos - sorrindo ou chorando -, mesmo sabendo do seu caráter fantasioso e que terá fim em duas horas, também poderíamos viver os acontecimentos cotidianos - deleitando ou sofrendo - da mesma maneira, lembrando que podem estar exagerados e que serão transitórios.
      Mas o que fazer em relação ao uso comercial e abusivo das ilusões, seja com produtos inócuos, serviços ineficazes e informações inadequadas, recrutando uma maioria para o benefício e satisfação de poucos? Se eu não estiver enganado, com reflexão, inicialmente. 

domingo, 27 de maio de 2012

Tic tac

      As mudanças físicas - cabelos brancos, dificuldade visual para leitura, marcas de expressão no rosto - estão se tornando cada vez mais visíveis aos 42 anos de idade, avisando-me que a juventude passou. Mesmo agradecido pela ausência de hipertensão, diabetes e outros problemas de saúde que podem  surgir nesta idade, começo a visualizar o rastro do tempo. Curioso é que, internamente, parece que as modificações são menos evidentes, embora venha usufruindo de um maior aproveitamento das situações, evitando os pensamentos desnecessários - situação mais difícil com menos idade. Nos meus vinte e poucos anos ouvia - e não entendia - minha mãe dizer que era estranho ver o corpo sofrendo mudanças, mas a mente permanecendo sem maiores alterações.  Nos últimos quinze anos, fazendo avaliações cognitivas em pessoas com mais de 50 anos, continuo a escutar a mesma coisa: o esquisito, desafiador ou desagradável descompasso entre o envelhecimento físico e o psicológico - ao que parece, os desejos e os medos são mais resistentes que os músculos e órgãos à passagem dos dias.
       Esta semana uma senhora levou para a consulta algumas fotos suas e fez questão de me mostrar, na sequência dos acontecimentos: aos 15 anos, com a farda do colégio; na plenitude da sua morenice, aos 20; com 37, rodeada dos filhos; e aos 50,  numa reunião com colegas de trabalho. Em seguida, olhei para a frente e, numa outra fotografia, a vi com 71 anos, com um derrame facial e com a fisionomia naturalmente bastante diferente dos momentos anteriores. Por alguns instantes parei... e vi o tempo diante de mim!
      Até o final da adolescência as intensas mudanças no desenvolvimento corporal, com o esplendor da força e da destreza, seguem um ritmo semelhante ao das alterações comportamentais, com acentuada ousadia e prontidão mental. Ou seja, para um corpo diferente, uma nova mente. Contudo, esta simultaneidade parece não continuar após a juventude e os ritmos entre corpo e mente tendem a se diferenciar nos cinquentões. Apesar dos grandes avanços da medicina - adiando a deterioração do organismo -, e do surgimento de uma nova compreensão e atitude na terceira idade - levando pessoas a continuarem a realizar projetos pessoais e profissionais para além das seis décadas de vida -,  cedo ou tarde teremos que considerar a realidade: envelhecemos. É o inexorável fluxo dos acontecimentos que vivenciamos todos os dias, da infância  à vida adulta, do despertar para ir à escola ou o trabalho, ao anoitecer e retornar para a segurança do lar. Envelhecer é um fenômeno contínuo, que tem um início exuberante, com muitas e intensas aquisições - físicas e mentais -, mas que são gradualmente (ou não) subtraídas (embora algumas habilidades possam permanecer por toda a vida).  A perda se apresenta como uma companhia frequente à medida que o envelhecimento se torna acelerado, comprometendo o funcionamento de determinados órgãos e sistemas, a mobilidade, a autonomia, o poder de decidir ou de interagir (sem falar das outras perdas, envolvendo familiares, amigos e remuneração).
       Embora transpareça algo amedrontador, não percebo - até o momento - o terço final da vida como uma fase trágica, e não tenho a menor intenção de desestimular os que entraram (ou entrarão) para o grupo dos "enta" - cinquenta, sessenta, setenta. Ao contrário, estou convencido da beleza e da utilidade da velhice no aprimoramento de uma pessoa e de uma comunidade, mas sem deixar de reconhecer os vários e relevantes incômodos do período. Não se pode, no curso natural, interromper ou evitar o envelhecimento, mesmo com os diagnósticos precoces, medicamentos eficientes, cirurgias transformadoras, exercícios físicos regulares, alimentação adequada. Por isto, estando aproximadamente na metade do caminho e tendo a possibilidade (privilégio) de participar  das experiências dos pacientes, não posso desperdiçar a oportunidade: vou tentar tirar proveito das suas dores e prazeres, para me orientar no trecho final do meu percurso, mas sem pressa.

domingo, 13 de maio de 2012

Queimando a memória

      "Parece feito nas coxas " (expressão utilizada para designar um produto ou serviço malfeito - teria origem na época da escravidão, quando as telhas deixaram de ser moldadas nas pernas dos escravos); "fala mais que o homem da cobra" (frase indicativa de uma pessoa que verbaliza exageradamente - teria surgido das feiras do interior, há muitos anos, quando se vendiam cobras para exterminar ratos e insetos, cujos vendedores falavam exaustivamente as qualidades dos seus animais). Informações obtidas com meus pacientes idosos, junto com outras experiências mais marcantes - presença no front da segunda guerra mundial, imigração de alguns africanos e europeus para o Brasil. São experiências que, embora não tenham sido solicitadas, foram espontaneamente relatadas durante as avaliações neuropsicológicas e cuidadosamente aproveitadas como aprendizado, seja pela imaginação ou reflexão. De uma forma ou de outra, este grupo de pacientes geralmente me presenteia.
      Esta semana atendi uma  "boleira" de setenta e dois anos de idade, que produz e comercializa doces e salgados há mais de cinquenta anos, e que teve a gentileza de tornar a minha semana mais saborosa, oferecendo-me uns docinhos. A vida dela, entretanto, não está nada palatável, uma vez que anda muito esquecida. Angustiada, reclamou que tem deixado queimar as encomendas - o bolo no forno e outras comidas nas panelas -, causando-lhe prejuízo e muita preocupação. Acrescentou ainda que, de vez em quando, esquece também de colocar algum ingrediente na receita ou fica insegura na sequência do preparo. Sem entender, questionou como era possível esquecer situações cotidianas e lembrar de antigas clientes e de grandes festas que promoveu há vinte ou trinta anos. É realmente uma dúvida que inquieta muitas pessoas: por que é mais fácil recordar fatos antigos que os recentes?
      Inicialmente, para fazer uma boa memória precisa-se de vários ingredientes, como a motivação, atenção e emoção (descritos na postagem do dia 21 de agosto de 2011 - Memória à moda da casa) - componentes nem sempre tão disponíveis nas pessoas com mais de setenta anos. Em seguida, é necessário levar a massa ao forno (regiões temporais mesiais do cérebro, que desempenham um papel fundamental na consolidação de novas memórias) e deixar assar por várias noites (as informações são melhor armazenadas durante o sono). Finalmente o bolo é retirado do forno e posto a mesa para ser degustado (as lembranças são transferidas definitivamente das regiões temporais para o córtex cerebral e evocadas sempre que necessárias).
      Armazenar informações com vinte ou trinta anos é tão fácil e simples como utilizar um fogão novinho: funciona que é uma beleza! Com a idade chegando, pode ir enferrujando a estrutura, desgastando as peças e alterando a uniformidade do calor no seu interior, solando o bolo. As memórias remotas não precisam mais passar pelo forno: já foram assadas e estão prontas, sendo então mais facilmente lembradas. Já os acontecimentos recentes terão que percorrer todo aquele preparo e encontrar o eletrodoméstico em plenas condições. Falando nisso, a situação da minha simpática "boleira" é mais complicada e infelizmente não posso retribuir sua gentileza como gostaria, presenteando-a merecidamente com um novo fogão, quero dizer, uma nova memória.

domingo, 6 de maio de 2012

Animais

      O desenvolvimento urbano de uma região geralmente resulta num desequilíbrio ambiental, comprometendo as espécies animais e vegetais, porém com a permanência de alguns exemplares mais adaptáveis. Lá na Barra Nova a destruição da capoeira pela expansão imobiliária vem destruindo o habitat de mamíferos, aves e répteis, além da vegetação nativa. Porém, alguns pássaros e mamíferos continuam no território, resistindo bravamente à invasão humana. Um deles é um inquilino ágil e travesso, que se move pela fiação elétrica e antenas de tv das casas, pula muros e telhados, procurando os pés de caju, manga e goiaba das residências: o sagui. Hoje, quando voltei ao povoado, na expectativa de encontrar frutas bem madurinhas em casa, mais uma vez cheguei tarde: os pequenos macacos já tinham feito a festa e só encontrei o resto no chão. Enquanto apanhava as sobras da farra da macacada, escutei os guinchos e assobios emitidos de longe; em seguida, mais próximos, presenciei uma briga barulhenta entre dois machos, provavelmente por ascensão social ou competindo por uma fêmea (dizem que o sagui demonstra sua superioridade na hierarquia mostrando seu traseiro ao outro). Entre residências e automóveis, o primata sobrevive e mantém seus antigos hábitos. É o convívio do primitivo com o novo, do rudimentar com o civilizado.
         Um pouco frustrado por não fazer a colheita desejada, não demorei muito e fui almoçar com  familiares. No final da tarde, regressando para Maceió, encontrei os rotineiros malabaristas no semáforo, tentando descolar um trocado. Um pouco mais a frente, numa marquise de uma grande loja, um amontoado de adolescentes me chamou a atenção: maltrapilhos e com uma aparência pré-histórica, eles se envolviam numa briga feroz. Uma mão segurando um garrafa de plástico com cola de sapateiro e a outra com uma grande pedra, dois garotos se ameaçavam intensamente. A agressividade estampada nos olhos e corpos imundos, o jeito como se movimentavam e a excitação do grupo para ver quem seria o mais forte foi algo chocante! Uma bizarra situação que parecia mais uma cena de documentário do History sobre  civilizações primitivas. Só que estava acontecendo no século vinte e um e eu estava presenciando. Estava testemunhando pessoas - como eu e meus filhos - vivendo e se comportando como animais selvagens; usando substâncias psicoativas, que causam danos até irreversíveis nos circuitos cerebrais responsáveis pela aprendizagem e pelo controle dos impulsos; eu estava assistindo à ausência total do Estado e o resultado de décadas de irresponsabilidade e desumanidade dos nossos representantes e gestores públicos (referendados pela nossa conveniente conivência), numa disputa eterna para ser o macho alfa.
        Gostaria muito de poder continuar presenciando cenas de comportamento selvagem apenas nos saguis e não em pessoas, que as disputas ficassem nos estádios e quadras esportivas, que a urbanidade predominasse no ambiente urbano, e que pudéssemos ser mais eficientes em identificar nuances de condutas animalescas, extinguindo-as civilizada e democraticamente.

domingo, 29 de abril de 2012

Tecnologias

      Após muito tempo de vida, já realizando suas atividades com lentidão, bastante defasado em relação aos mais jovens e visivelmente danificado - sendo até motivo de chacota entre os familiares -, chega finalmente o fim... do meu celular! Extremamente alheio às novidades tecnológicas destes aparelhos, preferindo sempre o que fosse eficiente - em simplesmente ouvir e falar -, e que não precisasse realizar cálculo matemático para entender o menu, passei esta semana chateado. Precisando escolher outro celular, convidei uma pessoa altamente especializada em tecnologia - minha esposa - para me socorrer nesta empreitada, e me deparei com uma infinidade de opções nas vitrines, com explicações das atendentes que mais pareciam aulas de Física I e que me fizeram sentir como um membro das tribos isoladas da Amazônia. Após um bombardeio de informações técnicas das autoridades femininas, comprei (ou  fizeram-me comprar?) um tal de Android que, pelo muito que ouvir e pouco que entendi o robô só faltava falar, ou melhor, falar é o que de mais simples ele sabia fazer.
      Depois, lendo o manual para diminuir a minha ignorância, descobri que Android é o sistema operacional do equipamento, que realiza rapidamente uma infinidade de funções com os vários ships que possui - tira foto e filma com recursos bem variados, faz contatos através de mensagens, emails, viber, tem gps, navegador, músicas, calculadora, calendário, documentos do Office, gravador de voz, rádio, wi-fi, ponto de acesso portátil, bluetooth... Tem até  bloqueio de palavras ofensivas e emoticons, segundo o manual é "para dar vida às mensagens". Pensei até em usá-lo para assar pão, já que também utiliza microondas, igual ao forno (perto deste, o menu do meu falecido parece mais o de um restaurante de beira de estrada).
      Acostumado com o comportamento primitivo de apertar as teclas para me comunicar, deslizar o dedo sobre a tela do celular foi uma tarefa divertida e engraçada - para a plateia familiar a que me assistia. Novamente precisei da ajuda de um outro professor, meu filho de 15 anos, que, com muito carinho e bom humor, foi pacientemente me explicando a utilidade dos intermináveis aplicativos (com as atividades e responsabilidades cotidianas de um pai de 3 filhos, para utilizar rotineiramente todas as possibilidades do equipamento, precisaria que o meu dia fosse igual ao de vênus - equivalente a 243 dias terrestres). Sexta-feira, após o costumeiro passeio com os  cavalos, contemplando sua força e beleza na pista empoeirada da Barra Nova, retorno com o meu primogênito ainda ouvindo seus ensinamentos cibernéticos. Com um pouco mais de informação sobre o mundo virtual e, consequentemente, menos espantado - até utilizando alguns recursos -, repentinamente no trajeto para casa me lembrei do meu pai - na minha adolescência - preocupado com o futuro dos filhos no envolvimento com as novidades da modernidade. Menos catastrófico que ele, também achei necessário refletir com o Victor sobre um dos maiores desafios comportamentais da humanidade que vislumbro para as próximas décadas:  selecionar.
      Numa sociedade que busca cada vez mais situações ou relações intensas, rápidas e cômodas,  escolher não será uma tarefa fácil. A rapidez e a variedade de opções (brinquedos, máquinas, cursos, profissões, igrejas, encontros e experiências), bem como a facilidade de obtenção, incorporadas nos relacionamentos afetivos, educação dos filhos, decisão profissional, lazer e religião tornarão as pessoas cada vez mais ansiosas quando tiverem que preferir (arrisco-me a dizer que o avanço econômico, a competitividade e a sofisticação da vida, entre outras coisas, contribuirão bastante para esta possível realidade).
      Como realizar uma escolha apressadamente, se seu processamento necessita de circuitos cerebrais amplos e distintos, com ingredientes cognitivos e emocionais, fermentados sob a ação branda do tempo e da solidão?  Como selecionar o primeiro, sem a incômoda sensação de renunciar o segundo, terceiro, quarto, quinto (não seria mais confortável tê-los também)? Como optar por algo ou alguém, tendo que enfrentar as consequentes implicações? E, finalmente, como aguardar o amadurecimento dos frutos da escolha, com tanta pressa?
      É claro que não esgotei meu filho com todos estes questionamentos (afinal de contas ele - como eu - precisamos nos deslumbrar com algumas coisas); procurei apenas estimulá-lo na reflexão de certos aspectos envolvidos na relação com amigos, paqueras, escolha profissional mas, sobretudo, procurei destacar determinadas instruções que acredito serem aplicativas no inevitável, complexo e cotidiano jogo: viver. 

domingo, 22 de abril de 2012

Diferenças que fazem a diferença

       No início de uma avaliação neuropsicológica com crianças menores de seis anos, após entrevista inicial com os pais, geralmente vou à escola - com a autorização deles e da instituição - para observar o estudante no contexto escolar: converso com a equipe técnica e acompanho algumas atividades na sala e/ou no recreio, sem que o mesmo saiba quem sou (para que minha presença tenha menor impacto no seu comportamento espontâneo). Com este objetivo fui, nesta última sexta-feira, avaliar dois estudantes numa mesma escola. Após o contato inicial com a coordenadora, que me forneceu algumas informações preliminares, foi chamada a professora para detalhar as dificuldades identificadas no garoto. Em seguida fui para a sala de aula observá-lo na relação com a professora, com os colegas e com a aprendizagem. Diferentemente das situações anteriores - com outros pacientes -, onde geralmente presencio a inquietação, irritabilidade, agressividade, coordenação motora incipiente ou dificuldade de seguir normas e regras, neste dia houve uma peculiaridade: a grande semelhança comportamental dos menores, apresentada pela equipe pedagógica e demonstrada por eles durante a visita. Como num déjà vu, nos dois procedimentos as professoras relataram basicamente as mesmas queixas, percebidas in loco: intensa dificuldade de relacionamento, isolamento social, movimentação constante e aparentemente despropositada na sala de aula, linguagem e comunicação restritas, incômodo acentuado diante do barulho, indiferença pelas atividades escolares, evitação do contato visual e um grande interesse em permanecer diante do espelho, realizando alguns movimentos estereotipados com as mãos. Apesar das outras características individuais distintas - um costuma jogar-se embaixo da carteira quando inseguro e o outro manifesta um importante espelhamento quando presencia um colega chorando -, a repetição das mesmas dificuldades foi o diferente no último dia útil desta semana, no contato com dois pacientes com perfil sugestivo do espectro autista. Nas escolas por onde tenho andado, diferente é também como são definidas estas e outras pessoas que apresentam  Transtorno Invasivo do Desenvolvimento; pouco habilidosas na compreensão dos jogos sociais e na reciprocidade, aparentando descaso com o outro. E para complicar a situação delas, as restrições que apresentam não se resumem à socialização, mas comprometem ainda a comunicabilidade e o repertório de interesses. Independente da possibilidade da preservação, em determinados pacientes, de várias funções cognitivas - inteligência, memória declarativa, funções visuoespaciais -, até com desempenho diferenciado em alguma delas, a tríade limitação (linguagem, socialização e comportamentos) causa realmente um transtorno na vida da criança e da família; resultam numa intensa desvantagem em relação aos demais alunos da turma. Entre outros, com estimulação fonoaudiológica, psicopedagógica e afetiva é possível atenuar os sintomas. No momento, entretanto, o que preciso tentar diminuir é a dificuldade das famílias daqueles garotos - percebida no primeira entrevista - em aceitar a hipótese diagnóstica do espectro autista. Isto sim fará toda a diferença!

domingo, 15 de abril de 2012

Rumo ao infinito

     Nas noites escuras, costumava deitar em cima do muro e observar o céu todo estrelado: contava os astros, procurava uma estrela cadente ou até um disco voador e me encantava com a imensidão piscante do firmamento; aos dez anos de idade falava que, quando crescesse, seria astronauta. Adiando sempre a procura por um curso de astronomia amador, esta semana tive uma surpresa quando, numa reportagem da tv, fui informado que havia um observatório astronômico na cidade e que estaria aberto ao público para observações de saturno. Com os meus dois filhos fui conhecer o observatório - que se localiza no centro educacional que estudei quando garoto - e ver o segundo maior planeta do sistema solar, que durante estes dias está mais perto da terra - apenas alguns milhões de quilômetros. Embora já tenha visto na televisão e na internet fotografias e vídeos de alguns planetas, cometas e nebulosas, obtidos por sondas espaciais ultra sofisticadas, quando, nesta última sexta-feira, localizei saturno no céu e o vi no telescópio - mesmo que pequeno e com poucos detalhes -, fiquei maravilhado em ter um contato tão direto  com o astro. Conseguir identificar seus anéis e imaginá-los repletos de rochas, gás e gelo, girando continuadamente, foi algo extraordinário! Com o mesmo entusiasmo observei ainda o nosso vizinho marte, com sua inconfundível cor avermelhada. Alguns professores enriqueceram a visita, com informações sobre as constelações, formação dos planetas, etc. Como em outros momentos em que assisti aos documentários e reportagens sobre big bang, buracos negros, buracos de minhoca, nascimento de estrelas, expansão do universo e matéria escura, mais uma vez fiquei impressionado com a complexidade do universo. Curiosamente, quando aventuro alguma leitura no universo microscópico do ser humano, sobre os cromossomos, gene, moléculas, partículas subatômicas, presentes nas trilhões de céluas do corpo, realizando uma quantidade assustadora de fenômenos fisiológicos, também fico espantado com os números astronômicos em algo tão pequeno. Parece que quanto mais  a ciência se aprofunda no conhecimento - seja da célula ou do cosmos -, mais vislumbra o infinito. Como um astronauta, continuarei a viajar nas duas direções (ou será apenas uma?) mas, no momento, quero parar um pouco nos anéis de saturno.

domingo, 1 de abril de 2012

A sabedoria das dificuldades

      Esta semana atendi uma criança de 10 anos de idade, com queixa  - segundo os pais - de intensa dificuldade na aprendizagem, principalmente na leitura. Sua mãe demonstrava intensa angústia pelo comprometimento da filha na escola, manifestando ainda grande expectativa pela avaliação que se iniciava, ansiosa por um tratamento que tornasse a garota uma boa estudante. A paciente, manifestando entusiasmo e adequada habilidade social, parecia não se incomodar tanto com o seu desempenho acadêmico. Infelizmente, através dos instrumentos utilizados, a dificuldade que era percebida pelos pais como algo isolado na linguagem, foi se revelando como um transtorno cognitivo amplo, envolvendo várias funções mentais. Na entrevista devolutiva, informar aos familiares a deficiência intelectual da menina e as restrições atuais (atividades escolares) e futuras (atividades profissionais) não foi uma notícia que gostaria de dar.
      Dois dias depois uma jovem de vinte e poucos anos, graduada numa universidade de referência nacional, diferenciada cognitivamente e independente financeiramente, demonstrou uma preocupante fragilidade emocional, com uma incipiente habilidade em lidar com a frustração. Apesar de bonita, fluente e inteligente, sua outra inteligência  - emocional - lamentavelmente contrastava e comprometia significativamente a qualidade dos seus dias, geralmente com desânimo e tristeza. Conscientizá-la da importância do acompanhamento psiquiátrico e psicológico e das restrições atuais (faltas no trabalho, socialização empobrecida, reduzida satisfação nas atividades) e futuras (agravamento dos sintomas e dos prejuízos) também não foi uma tarefa fácil. 
      Pessoas bem diferentes, com habilidades e dificuldades opostas, mas com significativas e dolorosas semelhanças - tanto para elas, quanto para os familiares; para os demais o que se espera é, pelo menos, solidariedade e, se for inteligente, alguma reflexão...


domingo, 25 de março de 2012

Dor de cabeça

        Durante a minha infância e adolescência presenciei a preocupação dos meus pais – e outros adultos – quando alguém levava uma pancada na cabeça: rapidamente colocavam gelo para o galo não crescer. Quando vinha acompanhada de sonolência e vômito o temor aumentava bastante, sendo o garoto geralmente conduzido ao serviço de urgência. Embora estes sinais venham sendo minimizados pelos neurologistas – não indicando necessariamente um agravamento do acidente – a cabeça continua a ocupar o primeiro lugar no ranking de cuidados com ferimentos, tanto pelos médicos, quanto pelas famílias. E não é à toa, pois abriga a maior concentração de células muito complexas, especializadas em conduzir e transmitir impulsos: os neurônios.
       No adulto são aproximadamente 100 bilhões de unidades que, desde a gestação, passam por várias fases, iniciando com a proliferação controlada, continuando com a migração para regiões específicas do cérebro, ocorrendo em seguida a diferenciação celular, formando os circuitos neurais, eliminando as células e circuitos redundantes (“poda”) e mielinizando o axônio (terminação transmissora do neurônio, envolvida pela bainha de mielina, que é a responsável pela rápida condução do impulso nervoso). São etapas iniciadas no útero e continuadas após o nascimento. Com uma adequada alimentação e estimulação (afetiva e cognitiva), a mielinização se espalha no cérebro mais intensamente nas duas primeiras décadas de vida, de trás para frente (das regiões posteriores do cérebro, essencialmente perceptivas, para as anteriores, executivas). O desenvolvimento pleno resulta no andar, falar, ler, aprender e muitos outros comportamentos que tanto encantam e emocionam os pais ao longo do crescimento do filho. Mas, por outro lado, se nos circuitos relacionados com a cognição houver alterações nas etapas (forma e função), haverá também limitações na linguagem, atenção, interação com pessoas ou no controle dos impulsos, ocasionando desvantagens na socialização e na aprendizagem.
       Nas crianças, as modificações relevantes no código genético se destacam na origem dos transtornos de aprendizagem, enquanto nos adultos o uso de drogas, infecções, AVE (acidente vascular encefálico), síndromes demenciais e TCE (traumatismo cranioencefálico) respondem pelas limitações cognitivas (esquecimento, desatenção) e comportamentais (agitação, agressividade), ao ponto de comprometerem gravemente o desempenho social e profissional. Apesar da existência de sistemas de proteção do sistema nervoso – crânio, líquor e as meninges – o tecido nervoso torna-se vulnerável diante de estímulos mecânicos intensos e/ou repetidos, devido ao impacto da massa encefálica contra as paredes do crânio. Já fiz avaliação neuropsicológica em vários pacientes que desenvolveram mudanças profundas da personalidade, prejuízos significativos da memória de trabalho e das funções executivas após quedas, acidentes com veículo, moto e até bicicleta. A reabilitação cognitiva nestes casos é um processo longo, penoso e com resultados nem sempre animadores.
       Infelizmente parece que este grupo de pacientes vai aumentar, com a globalização do MMA, pretensa prática esportiva, cuja "vitória" resulta sempre no intenso sofrimento físico do adversário (não seria mais adequado chamá-lo de vítima?), tem como um dos principais alvos a cabeça e como lance mais desejado (gol de placa)  o nocaute - concussão cerebral.  Como é possível, diante da complexidade, importância e vulnerabilidade do funcionamento cerebral, considerar o MMA um esporte (atividade que surgiu inicialmente com fins militares, mas que progrediu como uma fantástica maneira de sublimar tendências humanas primitivas)? Assim como nas propagandas dos cigarros, a divulgação desta luta deveria informar aos gladiadores a possibilidade de desenvolverem a Demência do Pugilista - processo neurodegenerativo que cursa com declínio cognitivo acentuado e outras alterações motoras.  
       Para uma sociedade tão agredida pela violência urbana como a nossa, certamente o MMA (e semelhantes) terá uma enorme popularidade (com grandes lucros, é claro), confirmando a idéia que  o desenvolvimento de uma pessoa, comunidade ou espécie não significa sempre passos à frente. E como o aumento do número de praticantes com lesões físicas e mentais não terá a mesma publicidade que os bizarros e sanguinolentos combates, teremos também que entrar no coliseu e lutar! Usando a cabeça, lutaremos contra a falta de informação, a desinformação e a tentativa de tornar natural comportamentos arcaicos e desnecessários que, como dito no dia 11/03 (“Cutucando a onça com vara curta”), precisam ser sublimados e não estimulados.