domingo, 22 de julho de 2012

O terrível esquecimento

   
      Em 2009 realizei uma avaliação neuropsicológica numa pessoa de 50 anos, que reclamava de um intenso problema de memória. Trabalhando como executiva de uma grande instituição, viajando constantemente, participando de várias reuniões e cursos, afirmava que seu desempenho estava desmoronando: esquecendo dos compromissos agendados, dos eventos frequentados, das decisões tomadas e das novas informações adquiridas. Apesar de também manifestar o humor bastante deprimido - chorando constantemente, com uma perspectiva pessimista da própria saúde e demonstrando isolamento social - e do consequente prejuízo cognitivo (alterações da atenção, memória de trabalho e funções executivas, principalmente), os dados da avaliação indicavam deterioração cognitiva importante, sendo então encaminhada para a geriatria.
      Esta semana ela retornou, dizendo que, apesar da melhora no quadro geral, o esquecimento persiste. Com um exame de ressonância magnética revelando atrofia importante nas regiões temporais mesiais do cérebro (fundamentais na memória de longa duração), disse ainda que foi aposentada por invalidez naquele ano, após iniciar o tratamento medicamentoso no mesmo período - interrompido há algum tempo. Embora demonstrando momentos de lucidez, com o ânimo adequado e descrevendo alguns fatos ocorridos neste ínterim, inúmeras lacunas na evocação, reduzida fluência verbal e significativa imprecisão temporal dos acontecimentos foram observadas. Além disso, ao me fixar no seu rosto, percebi algo comumente encontrado em pacientes demenciados, que definiria como um "olhar alheio" e que, mesmo sem fundamento científico e possivelmente contaminado pela minha subjetividade, associo a um possível esvaziamento cognitivo. Seus familiares, tentando esquecer o problema e procurando levar uma vida normal com ela, "estimulam-na", pedindo repetida e até asperamente para se esforçar e se lembrar das coisas. O marido, visivelmente dedicado e companheiro, envolto de angústia, deixou escapar que não consegue aceitar a situação da esposa. Os filhos, segundo ele, embora amorosos, também se irritam com os rotineiros esquecimentos da mãe. E a paciente, interrompida na sua trajetória de experiências - profissionais, familiares, sociais - vai preenchendo seus dias com o que lhe resta de memória. Como se não bastasse a perda do trabalho realizador, das aspirações, do convívio com as pessoas, das lembranças da própria história, está perdendo algo essencial: o poder de decidir e, possivelmente, a felicidade (Felicidade é poder! - postagem do dia 07/08/2011).
      Apesar da alta escolaridade (pós-graduada), desempenho multifuncional (profissional, mãe, esposa, dona de casa) e das relações afetivas terem possibilitado o desenvolvimento de uma exuberante e vantajosa reserva cognitiva, o processo neurodegenerativo progride... E, com ele, a deterioração do que foi construído ao longo da história - lembranças, conhecimentos, hábitos, virtudes, defeitos. A demência é a perda da vida, em vida. Mas, felizmente, com o avanço da medicina, já é possível diluir essa perda por vários anos, e até décadas, aumentando a quantidade e a qualidade de vida dos pacientes. Para isso, é fundamental o diagnóstico precoce e a manutenção do tratamento, porque o processo é irreversível e progressivo. Que progressivo continue sendo também o conhecimento científico sobre as síndromes demenciais para que, num futuro próximo, histórias não sejam drasticamente interrompidas e que não seja destruída a mais valiosa lembrança do ser humano, sua individualidade.

domingo, 8 de julho de 2012

"Partícula de Deus"

                         


   Aproximadamente às 20:30h desta última quarta-feira, dia 04 de julho, após tomar uma quente e saborosa sopa  de legumes no jantar, fui me deitar preguiçosamente no sofá da sala, procurando um programa de televisão interessante e ameno, compatível com a despedida do dia. Sem opções e maior interesse, coloquei no rotineiro noticiário da noite... quando o entusiasmo do apresentador me fez sentar: era o anúncio da observação inédita de uma partícula subatômica, realizada pelo Centro Europeu de Pesquisa Nuclear, com grande probabilidade de ser  o "bóson de Higgs", apelidado de " partícula de Deus". Mesmo leigo no assunto, a euforia dos cientistas na divulgação dos resultados iniciais e, principalmente, as lágrimas do britânico Peter Higgs no auditório, quase cinquenta anos após a idealização da teoria, deixaram-me realmente emocionado. Que bela fotografia! Levantei imediatamente e, na internet, vi que a tal partícula daria origem à massa de todas as demais partículas e estava sendo perseguida pelos cientistas ao longo das últimas décadas. Parece que esta era a pesquisa mais importante que vinha sendo realizada pelo acelerador de partículas - LHC -, um aparelho construído ao longo de 27 quilômetros, entre a França e a Suíça, considerada a máquina mais poderosa do mundo. Com a mais alta tecnologia e os mais sofisticados instrumentos, o LHC é capaz de fazer colidir prótons (partículas que formam o núcleo de um átomo)  - para os mais amedrontados (não especialistas),  o acelerador poderia até gerar um buraco negro e destruir a terra.
Mas, mesmo diante da complexidade do maquinário e do sucesso da descoberta - já candidata ao Prêmio Nobel -, repito que a minha alegria resultou mais da felicidade demonstrada pelo pesquisador aposentado de oitenta e três anos, Peter Higgs. Alguém que em 1964, sem o aparato tecnológico atual, concebeu a hipótese vigente, utilizando basicamente sua mente, seu cérebro: um equipamento com mais de 100 bilhões de unidades funcionais, conectadas em redes, com praticamente infinitas possibilidades, funcionando durante as 24 horas, por mais de 25.000 dias (equivalente a 70 anos), fazendo uso principalmente de oxigênio e glicose e, mesmo sem sensores ultra-sensíveis, consegue realizar um diagnóstico adequado da realidade, não só "vendo" estruturas invisíveis, mas também fenômenos do passado e do futuro, ocorridos próximos ou anos-luz de nós, interna ou externamente, de maneira concreta ou abstrata. Esta sim é a máquina mais poderosa do mundo; na imensidão do universo, é realmente uma partícula divina! É o tipo de notícia que entusiasma e aquece por dentro, como a sopa.

domingo, 1 de julho de 2012

Ganhamos!


     Extremamente cansado e rouco, cheguei há duas horas de uma viagem de três dias, junto com a família, onde acompanhamos o campeonato de handebol do nosso primogênito, em Estância, Sergipe. No retorno, enquanto todos dormiam, eu dirigia, procurando o que olhar às margens da rodovia, para espantar o sono que me rondava. Flash dos inúmeros jogos assistidos, da gritaria dos familiares na torcida, da final disputada hoje pela manhã e da premiação de campeão recebida me ajudaram muito a manter o foco na estrada. Sentindo ainda a alegria dos acontecimentos vividos, fui recordando o meu tempo de atleta: também jogador de handebol, lembrei de alguns torneios e viagens, da bagunça nos alojamentos, das partidas eletrizantes, das arquibancadas repletas, dos companheiros, das derrotas e das vitorias. Ótimas lembranças, de grandes e inesquecíveis momentos. De volta ao presente e faltando ainda algumas centenas de quilômetros para finalizar a viagem, comecei a pensar sobre algo que me deixou preocupado na competição: em vários times, o número de pessoas no banco de reservas era reduzido. Do nosso lado não era diferente e, até o goleiro, que disputou o torneio em duas categorias - juvenil e cadete -, não tinha um substituto. Se tivesse ocorrido uma lesão durante os jogos, os dois times estariam bem encrencados. Nos intervalos dos jogos, conversando com alguns atletas e pais, disseram que, em certas escolas particulares, o número de estudantes que participam de esportes está diminuindo. Uma triste realidade que, infelizmente, venho percebendo também em Maceió. Obcecados exclusivamente pela formação acadêmica, determinados colégios vêm colocando a prática esportiva como atividade de segunda classe, principalmente no ensino médio. Será que desconhecem que o exercício físico melhora o desempenho mental, como  a atenção, memória, orientação espacial e funções executivas, por estimular a sinaptogênese (formação de novas sinapses nervosas) e angiogênese (produção de novos vasos) em áreas cerebrais relacionadas com a aprendizagem, como o hipocampo? Sem falar do extraordinário aprendizado emocional que favorece, aumentado a tolerância à frustração e o controle da impulsividade, desenvolvendo estratégias para lidar com a ansiedade, aprendendo a trabalhar em equipe, respeitando normas e regras, mantendo-se persistente numa meta e suportando realizar tarefas repetitivas (disciplina).
      Proporcionar, estimular e valorizar a educação física e o esporte em crianças e adolescentes é enriquecer suas histórias com experiências, algo que vem faltando na vida destas pessoas, embora bastante fortalecidas de tecnologia e informações. Na família, sozinhos ou com um único irmão, não exercitam vigorosamente a conciliação e o espírito coletivo; alguns pais, muito ansiosos ou desinteressados, oferecem-lhes um ambiente familiar pouco desafiador e bem diferente do mundo lá fora; cada vez mais confinados em apartamentos, não exploram os espaços que os quintais disponibizavam; com medo da violência, não correm na rua, nem são premiados com as aventuras no bairro; com tanto entretenimento virtual, estão suando menos; na sala de aula, o professor vem progressivamente perdendo a autoridade e o comprometimento, deixando  os alunos sem referencial. Apesar do discurso que tal processo já ocorreu em vários países desenvolvidos (também com incremento de preocupantes alterações comportamentais), é importante analisar os ganhos efetivos de uma preparação escolar essencialmente informativa. A vitória então seria obtida não apenas com o acesso rápido a uma boa faculdade, através de um treino técnico exaustivo (informações), mas também com o desenvolvimento tático, incluindo habilidades de autoconhecimento, empreendedorismo e resiliência, fundamentais para um sucesso progressivo e sustentável. De que adianta preparar um aluno para ser exclusivamente um grande competidor em notas escolares, com uma exuberante musculatura acadêmica, fazê-lo subir o pódio de um concorrido curso e, após alguns anos, ele iniciar uma maratona de frustrações e limitações, envolvendo a impulsividade, ansiedade e depressão? Isso não quer dizer que o handebol, basquete ou a natação deixem o atleta inatingível física e mentalmente, mas que provavelmente - junto com outras atividades familiares, religiosas, sociais, culturais - enriquecerão a formação do indivíduo, conferindo a ele um repertório maior de experiências e conduzindo ao amadurecimento: esta sim, uma das maiores medalhas que podemos conquistar!