domingo, 25 de março de 2012

Dor de cabeça

        Durante a minha infância e adolescência presenciei a preocupação dos meus pais – e outros adultos – quando alguém levava uma pancada na cabeça: rapidamente colocavam gelo para o galo não crescer. Quando vinha acompanhada de sonolência e vômito o temor aumentava bastante, sendo o garoto geralmente conduzido ao serviço de urgência. Embora estes sinais venham sendo minimizados pelos neurologistas – não indicando necessariamente um agravamento do acidente – a cabeça continua a ocupar o primeiro lugar no ranking de cuidados com ferimentos, tanto pelos médicos, quanto pelas famílias. E não é à toa, pois abriga a maior concentração de células muito complexas, especializadas em conduzir e transmitir impulsos: os neurônios.
       No adulto são aproximadamente 100 bilhões de unidades que, desde a gestação, passam por várias fases, iniciando com a proliferação controlada, continuando com a migração para regiões específicas do cérebro, ocorrendo em seguida a diferenciação celular, formando os circuitos neurais, eliminando as células e circuitos redundantes (“poda”) e mielinizando o axônio (terminação transmissora do neurônio, envolvida pela bainha de mielina, que é a responsável pela rápida condução do impulso nervoso). São etapas iniciadas no útero e continuadas após o nascimento. Com uma adequada alimentação e estimulação (afetiva e cognitiva), a mielinização se espalha no cérebro mais intensamente nas duas primeiras décadas de vida, de trás para frente (das regiões posteriores do cérebro, essencialmente perceptivas, para as anteriores, executivas). O desenvolvimento pleno resulta no andar, falar, ler, aprender e muitos outros comportamentos que tanto encantam e emocionam os pais ao longo do crescimento do filho. Mas, por outro lado, se nos circuitos relacionados com a cognição houver alterações nas etapas (forma e função), haverá também limitações na linguagem, atenção, interação com pessoas ou no controle dos impulsos, ocasionando desvantagens na socialização e na aprendizagem.
       Nas crianças, as modificações relevantes no código genético se destacam na origem dos transtornos de aprendizagem, enquanto nos adultos o uso de drogas, infecções, AVE (acidente vascular encefálico), síndromes demenciais e TCE (traumatismo cranioencefálico) respondem pelas limitações cognitivas (esquecimento, desatenção) e comportamentais (agitação, agressividade), ao ponto de comprometerem gravemente o desempenho social e profissional. Apesar da existência de sistemas de proteção do sistema nervoso – crânio, líquor e as meninges – o tecido nervoso torna-se vulnerável diante de estímulos mecânicos intensos e/ou repetidos, devido ao impacto da massa encefálica contra as paredes do crânio. Já fiz avaliação neuropsicológica em vários pacientes que desenvolveram mudanças profundas da personalidade, prejuízos significativos da memória de trabalho e das funções executivas após quedas, acidentes com veículo, moto e até bicicleta. A reabilitação cognitiva nestes casos é um processo longo, penoso e com resultados nem sempre animadores.
       Infelizmente parece que este grupo de pacientes vai aumentar, com a globalização do MMA, pretensa prática esportiva, cuja "vitória" resulta sempre no intenso sofrimento físico do adversário (não seria mais adequado chamá-lo de vítima?), tem como um dos principais alvos a cabeça e como lance mais desejado (gol de placa)  o nocaute - concussão cerebral.  Como é possível, diante da complexidade, importância e vulnerabilidade do funcionamento cerebral, considerar o MMA um esporte (atividade que surgiu inicialmente com fins militares, mas que progrediu como uma fantástica maneira de sublimar tendências humanas primitivas)? Assim como nas propagandas dos cigarros, a divulgação desta luta deveria informar aos gladiadores a possibilidade de desenvolverem a Demência do Pugilista - processo neurodegenerativo que cursa com declínio cognitivo acentuado e outras alterações motoras.  
       Para uma sociedade tão agredida pela violência urbana como a nossa, certamente o MMA (e semelhantes) terá uma enorme popularidade (com grandes lucros, é claro), confirmando a idéia que  o desenvolvimento de uma pessoa, comunidade ou espécie não significa sempre passos à frente. E como o aumento do número de praticantes com lesões físicas e mentais não terá a mesma publicidade que os bizarros e sanguinolentos combates, teremos também que entrar no coliseu e lutar! Usando a cabeça, lutaremos contra a falta de informação, a desinformação e a tentativa de tornar natural comportamentos arcaicos e desnecessários que, como dito no dia 11/03 (“Cutucando a onça com vara curta”), precisam ser sublimados e não estimulados.

segunda-feira, 19 de março de 2012

Vivenciar, compartilhar e reutilizar

     A cada minuto, milhões de pessoas postam suas vidas - ou o que gostariam que fosse – nas redes sociais on line (Facebook, Orkut, Twitter, Msn, etc); são imagens, mensagens, notícias, piadas, banalidades, demonstrando uma necessidade que vem crescendo na mesma proporção que o uso da internet: a de compartilhar. Dividir com alguém sua rotina, diversões, viagens, projetos, reflexões e aspirações, numa busca de interação, acredito. Os meus traços autísticos não me tornam um frequentador assíduo das redes  virtuais, mas eventualmente tenho boas surpresas quando me aventuro por estas áreas.
      Há dois anos, pelo Orkut, localizei amigas da minha adolescência que não tinha contato há mais de vinte anos. On-line, foi possível me reaproximar de pessoas que as circunstâncias da vida dificilmente fariam reencontrá-las, pois uma estava morando no Rio de Janeiro e outra na Índia. Reencontrei também lembranças agradáveis do científico - para os mais jovens, ensino médio - com os colegas, as festas, viagens e campeonatos de handebol (lembrei também dos momentos de estudo, busca de informações, entretenimento - bem menos que os da nova geração -,  e dos treinamentos esportivos, responsabilidades em casa, disciplina familiar - bem mais que os de hoje).
      Ontem minha esposa - esta sim, frequentadora de carteirinha do Facebook - comentou que uma colega de faculdade teria retornado a Maceió e publicado algumas fotos daquele tempo (expressão verbal de quem já dá indícios de envelhecimento). Ao vê-las, mais uma vez fui tomado por recordações da juventude, iniciando o curso de psicologia - entre 1990 a 1994. Não faltava descontração, disposição física, curiosidade e vontade de conhecer coisas novas (poucas, para ser mais preciso). Fiquei surpreso em identificar colegas da turma que já não mais lembrava. Apesar das fotografias serem antigas, o entusiasmo e a alegria envernizavam os nossos rostos juvenis, desprovidos ainda das marcas e rugas dos anos. Por alguns instantes voltei no tempo, visitando alguns lugares e vivendo novamente certas situações. Como diz meu filho, "foi massa!" Percebi então que a vivência de ocasiões prazerosas tem duas imensas utilidades: no presente, quando experienciamos e nos deleitamos com o momento, e no futuro, quando recuperamos a lembrança e novamente vivenciamos aquelas emoções.
      Continuando no túnel do tempo, fui navegando para o futuro, construindo o cenário dos meus 80 anos - em 2049 -, a partir dos depoimentos dos idosos conhecidos (pais, pacientes). Torcendo para que até lá uma bala perdida não me encontre, assim como um alcoolizado no volante ou uma doença preocupante, fiquei imaginando situações que gostarei de lembrar na terceira idade. Como o desenvolvimento  e encaminhamento dos filhos e familiares, recordações de lugares exóticos visitados, trechos de postagens do blog, fisionomias e nomes dos colegas, características da mente humana e, principalmente, o que fiz no dia anterior (senão posso estar com Alzheimer e aí não há presente ou passado que se sustente).
       Enquanto isso, que nas próximas décadas eu possa construir um patrimônio de recordações de boa qualidade, reservas de momentos gratificantes, para serem utilizadas nos instantes de abatimento, e que as redes sociais promovam mais encontros genuínos, entrelacem  pessoas e recuperem experiências esquecidas. Mas sempre ligado que, antes de compartilhar, é preciso vivenciar.

domingo, 11 de março de 2012

Cutucando a onça com vara curta

       No final da manhã dia 29 de fevereiro, quarta-feira, precisamente às 11:30h, recebi um telefonema da minha esposa: com a voz embargada, disse que tinha sido assaltada naquele momento, na entrada do banco, e que eu fosse imediatamente para lá. No trajeto, aprisionado entre um semáforo e outro, tentava imaginar a situação ocorrida com ela, lembrando de outros episódios ocorridos com familiares e amigos. Ao entrar na agência, encontrei Adriana sentada na cadeira, angustiada, com a gerente ao lado confortando-a e tomando algumas providências - bloqueando os cartões, sustando os cheques. Outras pessoas em volta, solidários, lamentavam mais um assalto a mão armada e criticavam a falta de segurança em nosso estado (embora o desenvolvimento das grandes cidades - infraestrutura, maior oferta de serviços e empregos - demore décadas para iniciar, suas mazelas chegaram rapidamente). Quando saímos, passando pela cena do crime e conversando com algumas testemunhas, comecei a vivenciar emoções e pensamentos bem pouco civilizados, perdendo a tranquilidade no resto do dia.
       Uma semana depois, durante a entrevista inicial de uma avaliação neuropsicológica, os pais de um paciente relataram, após se queixarem do prejuízo escolar do garoto, que a residência deles havia sido invadida por três indivíduos fortemente armados. Por várias horas ficaram sob a mira de pistolas - mãe, pai, filho - sendo ameaçados de morte constantemente. Embora não seja delegado nem trabalhe num ambiente policial, não é raro que assaltos, furtos e assassinatos sejam comentados pelos pais e pacientes nas consultas, misturando-se às queixas de dificuldades de atenção ou de memória. Se acrescentar as notícias diariamente divulgadas pela imprensa, tendo a violência como arma principal, chegarei facilmente a conclusão que estamos vivendo novamente num ambiente selvagem, como há milhares de anos. Cada vez mais amedrontados, desconfiados e ansiosos, estamos perdendo gradativamente o direito de ir e vir; nossos filhos estão trancafiados em apartamentos, casas eletrificadas ou televisionadas; forçosamente temos que aumentar os gastos com serviços e equipamentos de segurança e, acima de tudo, somos obrigados a conviver com uma intensa e patológica sensação de insegurança.
       Como se não bastasse, este estado psicológico implica em intensas alterações hormonais e de neurotransmissores que, se prolongadas, resultam ou intensificam doenças (hipertensão, diabetes, acidente vascular encefálico, cancer, gastrite, dermatite, dores em geral) e transtornos (ansiedade, humor, stress pós-traumático). Além disso, desperta tendências comportamentais bizarras, utilizadas nos primórdios da humanidade. A agressividade é tão antiga no ser humano quanto o seu cérebro, e foi essencial na sobrevivência da espécie num ambiente hostil; ambos têm uma longa história de mudanças e adaptações, mas a tendência animalesca continua potencialmente presente em cada um de nós. Existem áreas e redes neurais relacionadas com a brutalidade das nossas condutas: giros temporais e o sistema límbico, região presente nos mamíferos em geral, onde são processadas as emoções e formada pelo tálamo, hipotálamo, hipocampo, amígdala e giro do cíngulo. São estruturas como a amígadala, sentinela cerebral que confere conteúdo emocional aos estímulos captados - classificando-os como perigosos ou não -, e o hipotálamo, responsável também pela expressão e manifestação somática da emoção. A visão de uma pessoa desconhecida, a percepção de que se trata de um assaltante, a sensação de medo, o aumento dos batimentos cardíacos e as reações de lutar, fugir ou fingir-se de morto acontecem em segundos, nessa área profunda do sistema nervoso, antes mesmo que possamos refletir sobre o assunto (fenômeno que envolve principalmente o córtex cerebral, cujo trajeto neuronal é mais longo e, consequentemente, mais lento).
       O problema é que o sistema límbico foi desenvolvido para um contexto primitivo, perigoso, desprovido de linguagem verbal e de princípios éticos, com relações interpessoais provavelmente pouco cordiais. Permitir que nas esquinas, ônibus, metrôs, morros e residências prolifere a insegurança e o medo é atiçar tendências que devem ser sublimadas. A História está repleta de períodos de intensa violência e crueldade, praticada isolada ou coletivamente - o holocausto na segunda guerra, atentados terroristas, matança atual de civis na Síria,  tortura e morte do ex ditador da Líbia, Muamar Kadafi, e os milhares de homicídios praticados em Alagoas nos últimos anos.
       Precisamos urgentemente reagir de alguma forma, senão cedo ou tarde seremos vítimas ou agressores! E pouco adianta blindar veículos, comprar equipamentos com alta tecnologia, contratar seguranças 24h, ter direito a proteção policial, pois o predador tem tempo e sempre aguarda um momento de descuido da presa ou do filhote que, em algum momento, acontecerá. Poderíamos então utilizar uma outra área cerebral, o córtex, em especial as áreas pré frontais (região essencialmente humana), para reconhecer o problema, identificar as possíveis causas do aumento da criminalidade - como a também primitiva e desenfreada sede de poder presente na maioria dos nossos políticos, semelhante à dos macacos, lobos e leões -, com o objetivo de planejar  e executar estratégias (aprimorar os critérios de escolha dos nossos representantes e monitorá-los sistematicamente, preferir açoes coletivas às individuais, provocar as secretarias de estado, Ministério Público, OAB, imprensa nacional e internacional, etc). Nos últimos milênios o homem vem adquirindo conhecimentos, criando novas tecnologias e transformando o mundo. Está na  hora de priorizar as mudanças no meio interno, abandonando tendências desnecessárias e inadequadas. Mas, para isto, temos que deixar o bicho quieto!

domingo, 4 de março de 2012

Os novos desafios da escola

      Com o objetivo de desenvolver umas considerações sobre os transtornos que comprometem a aprendizagem apresentei, ontem pela manhã, uma palestra no Colégio Santa Madalena Sofia, refletindo também sobre as implicações na dinâmica educacional. Numa agradável surpresa, encontrei um auditório repleto de professores - do ensino infantil ao médio - ávidos em discutir o tema, participando ativamente do encontro, não só na compreensão das informações, mas também questionando e relatando suas experiências em sala de aula. Nunca é demais destacar que a aprendizagem é um fenômeno complexo, onde distintas variáveis interferem: orgânico, com destaque para o adequado amadurecimento e funcionamento das redes neurais; cognitivo, com a participação coletiva das faculdades mentais, como a inteligência; motivacional, caracterizando o desejo e a atitude do estudante em direção ao conhecimento;  social, das influências mútuas nem sempre explícitas; e pedagógico, com o modelo teórico utilizado pela escola, bem como a relação desenvolvida com o professor. Apesar do potencial intelectual, interesse pela aprendizagem, aparente contexto familiar e social favoráveis, bem como um ambiente escolar propício, têm alunos que demonstram comprometimento significativo para aprender.
         Há 30 anos, acredito que estes alunos só tinham três possibilidades de diagnóstico: inteligente, doente mental (e não deficiente) e preguiçoso. Ou seja, se o garoto era esperto para conversar, brincar e desenvolver outras atividades, mas não conseguia aprender, era preguiçoso! Era a lei do tudo ou nada. O tratamento incluía humilhações de alguns professores, "perda de pontos" (diminuição quantitativa nas avaliações antes mesmo de tê-las realizado) e reclamações frequentes aos pais. Se formos um pouco mais atrás encontraremos punições ainda mais severas: palmatória, ajoelhar-se no milho, ficar no canto da sala, em pé, bem próximo da parede, escrever inúmeras vezes frases pouco estimuladoras no quadro ou no caderno, dentre outras. Já nos últimos tempos o comportamento humano, seja no aspecto cognitivo, moral, afetivo vem sendo compreendido num espectro, numa decomposição gradativa de níveis de intensidade, que vai desde o retardo mental, por exemplo, até indivíduos com altas habilidades (antes chamados de superdotados).
         Na capacidade de priorizar estímulos e manter-se numa atividade (atenção concentrada) também temos um contínuo de possibilidades, desde aqueles que são hiper focados, até os que têm intenso prejuízo no controle de estímulos irrelevantes, principalmente quando desenvolvendo atividade que exige esforço mental prolongado. Do mesmo modo, podemos caracterizar a habilidade de ler, escrever, calcular, realizar movimentos coordenados e lidar com as emoções. A maioria das pessoas apresenta desempenho na parte intermediária do espectro, estando nos pólos aqueles que fogem da norma, seja para mais (altas habilidades) ou para menos (deficitárias). Os transtornos correspondem à performance significativamente abaixo do esperado: dislexia (para a leitura), Transtorno do Déficit de Atenção/Hiperatividade (para a atenção), Discalculia (para o cálculo), Disgrafia (para a escrita), Transtornos Afetivos (para a inteligência emocional). Estes transtornos podem existir isoladamente (apenas dislexia) ou comorbidades (dislexia e disgrafia, TDA/H e discalculia, disgrafia, discalculia e depressão). Diferentemente da dificuldade de aprendizagem, que é circunstancial (motivacional e ambiental), o transtorno - ou distúrbio - corresponde a uma disfunção no sistema nervoso central e resulta numa grande desvantagem para estudante, podendo ocasionar não só comprometimento na vida acadêmica, mas também no desenvolvimento profissional, afetivo e social.
      Além do diagnóstico e tratamento multiprofissional (médico, psicólogo, fonoaudiólogo), é essencial que a família e a escola também participem ativamente, com adaptações e modificações. Um ambiente familiar afetuoso, organizado, ritualizado e com monitoramento sistemático potencializa e mantém os ganhos do tratamento. Na escola, antes de qualquer alteração na estratégia de exposição e avaliação utilizada pelo professor, é decisivo que compreenda e aceite que o aluno com transtorno tem realmente uma desvantagem em relação aos demais.
           Ao final da calorosa e inquietante conversa que tivemos no auditório, com muitas perguntas e algumas respostas, ficou claro que além das informações - sintomas, diagnóstico, tratamento, intervenções - precisamos realmente aprender a aceitar e tolerar as limitações, sejam nossas ou dos outros, com as suas consequências. Procurar considerar o sofrimento da família e, principalmente, do estudante é semear a possibilidade de uma nova atitude, para duas novas pessoas - o educando e o educador.