domingo, 27 de novembro de 2011

A lembrança da demência

      "Eu não quero continuar vivendo assim; dessa forma não vale a pena viver!" Estas frases foram ditas por um paciente esta semana mas, de alguma forma, continuo a escutá-las. Ele tem 67 anos e vem - há uns dois anos - apresentando mudanças significativas na sua personalidade, com ênfase na impulsividade e agressividade. Discussões frequentes com familiares, amigos e até com estranhos nas ruas, por motivos insignificantes, mas com  intensidade, segundo ele, preocupante - "vontade de agredir qualquer um que me chame de feio". Alterações na alimentação (excesso), dificuldade acentuada para se concentrar e desenvolver leituras também foram mencionadas, assim como limitações recentes em algumas atividades cotidianas (gerenciamento das contas bancárias). Angustiado, disse ainda que a esposa e os familiares não mereciam seu comportamento e que estava evitando situações sociais. Trata-se de uma pessoa com trinta anos de casado - com aparente qualidade -, intelectualmente diferenciada, com alta escolaridade (mestrado), tendo desenvolvida atividade profissional de elevada complexidade, sem histórico psiquiátrico e com uma aposentadoria que incluía frequentes viagens. Na avaliação neuropsicológica seu desempenho cognitivo foi adequado à idade e escolaridade, exceto nas funções executivas (funções relacionadas às regiões anteriores do cérebro - frontais - e que envolvem o planejamento, execução, monitoramento e flexibilidade mental). A disfunção executiva, associada às modificações acentuadas da personalidade e outros sintomas sugerem, segundo as avaliações (médica, neuropsicológica)  uma síndrome demencial - fronto temporal (apesar dos raros momentos de insight). Muito menos frequente que a Demência de Alzheimer, destaca-se  pela preservação inicial das funções cognitivas, mas com mudanças acentuadas no comportamento. Apesar dos avanços científicos no diagnóstico e no tratamento, como toda síndrome demencial, ela também cursa no  comprometimento cognitivo progressivo e irreversível, relacionado com as alterações patológicas que acontecem nos neurônios (formação de placas senis). No final, com a perda neuronal excessiva, evidencia-se uma atrofia cerebral difusa acentuada, com um prejuízo cognitivo devastador, onde a pessoa "esquece" não só as lembranças (episódios da vida, conhecimento acumulado, nome de parentes), mas também as crenças, os hábitos e até os movimentos. Como aquele meu paciente, que vivenciou milhares de momentos alegres e tristes na vida, estudou anos a fio, trabalhou por décadas, criou os filhos e, agora na velhice, provavelmente esquecerá de tudo. A demência aparentemente destrói um dos principais patrimônios (ilusões?) do ser humano:  sua individualidade. O indivíduo perde as características que o tornaram único no mundo, ao ponto dos familiares dizerem: "este não é o meu pai", "ela não é a pessoa com quem casei". E como ainda não podemos evitar ou prevenir a demência, é possível pelo menos ter alguma proteção, monitorando a pressão arterial, realizando atividade física regular, tomando um bom vinho e querendo aprender coisas novas, mas sempre lembrando que desta vida não se leva nada, nada mesmo!

Nenhum comentário:

Postar um comentário