domingo, 13 de maio de 2012

Queimando a memória

      "Parece feito nas coxas " (expressão utilizada para designar um produto ou serviço malfeito - teria origem na época da escravidão, quando as telhas deixaram de ser moldadas nas pernas dos escravos); "fala mais que o homem da cobra" (frase indicativa de uma pessoa que verbaliza exageradamente - teria surgido das feiras do interior, há muitos anos, quando se vendiam cobras para exterminar ratos e insetos, cujos vendedores falavam exaustivamente as qualidades dos seus animais). Informações obtidas com meus pacientes idosos, junto com outras experiências mais marcantes - presença no front da segunda guerra mundial, imigração de alguns africanos e europeus para o Brasil. São experiências que, embora não tenham sido solicitadas, foram espontaneamente relatadas durante as avaliações neuropsicológicas e cuidadosamente aproveitadas como aprendizado, seja pela imaginação ou reflexão. De uma forma ou de outra, este grupo de pacientes geralmente me presenteia.
      Esta semana atendi uma  "boleira" de setenta e dois anos de idade, que produz e comercializa doces e salgados há mais de cinquenta anos, e que teve a gentileza de tornar a minha semana mais saborosa, oferecendo-me uns docinhos. A vida dela, entretanto, não está nada palatável, uma vez que anda muito esquecida. Angustiada, reclamou que tem deixado queimar as encomendas - o bolo no forno e outras comidas nas panelas -, causando-lhe prejuízo e muita preocupação. Acrescentou ainda que, de vez em quando, esquece também de colocar algum ingrediente na receita ou fica insegura na sequência do preparo. Sem entender, questionou como era possível esquecer situações cotidianas e lembrar de antigas clientes e de grandes festas que promoveu há vinte ou trinta anos. É realmente uma dúvida que inquieta muitas pessoas: por que é mais fácil recordar fatos antigos que os recentes?
      Inicialmente, para fazer uma boa memória precisa-se de vários ingredientes, como a motivação, atenção e emoção (descritos na postagem do dia 21 de agosto de 2011 - Memória à moda da casa) - componentes nem sempre tão disponíveis nas pessoas com mais de setenta anos. Em seguida, é necessário levar a massa ao forno (regiões temporais mesiais do cérebro, que desempenham um papel fundamental na consolidação de novas memórias) e deixar assar por várias noites (as informações são melhor armazenadas durante o sono). Finalmente o bolo é retirado do forno e posto a mesa para ser degustado (as lembranças são transferidas definitivamente das regiões temporais para o córtex cerebral e evocadas sempre que necessárias).
      Armazenar informações com vinte ou trinta anos é tão fácil e simples como utilizar um fogão novinho: funciona que é uma beleza! Com a idade chegando, pode ir enferrujando a estrutura, desgastando as peças e alterando a uniformidade do calor no seu interior, solando o bolo. As memórias remotas não precisam mais passar pelo forno: já foram assadas e estão prontas, sendo então mais facilmente lembradas. Já os acontecimentos recentes terão que percorrer todo aquele preparo e encontrar o eletrodoméstico em plenas condições. Falando nisso, a situação da minha simpática "boleira" é mais complicada e infelizmente não posso retribuir sua gentileza como gostaria, presenteando-a merecidamente com um novo fogão, quero dizer, uma nova memória.

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