segunda-feira, 8 de julho de 2013

Manifestações: abram os olhos!

      Nas últimas semanas as manifestações populares que ocorreram nas cidades brasileiras ocuparam grande parte da programação televisiva. O que começou como reação ao aumento da passagem dos ônibus tomou outras direções, com variadas reivindicações: falta de prioridade no uso de verbas públicas, baixa qualidade dos serviços oferecidos à população, projetos de lei inadequados, etc. O que era para ser um evento pacífico terminou resultando em depredações e conflitos entre manifestantes e policiais. Embora atualmente em menor intensidade, durante vários dias os protestos foram, provavelmente, o assunto mais discutido nas empresas, famílias e entre amigos: todos tentando entender este amplo e raro fenômeno social ocorrido no país.  De uma forma geral, o que temos escutado são palavras de apoio às manifestações, porém com críticas aos atos mais agressivos em relação aos policiais (e vice-versa) e ao patrimônio, seja ele público ou privado. A pichação, destruição de placas e semáforos,  saques de lojas, o arremesso de paus e pedras nos policiais, uso de coquetel molotov para incendiar veículos, orelhões e prédios causaram indignação da imprensa e da população em geral.
      Neste mesmo período - não sei se pela presença das milhares de pessoas nas ruas e a imprevisibilidade do comportamento da massa, ou ainda pela proximidade das eleições (2014) - tem ocorrido um surto de consciência coletiva no poder executivo e legislativo, ensaiando algumas providências exigidas nas ruas: diminuição do preço das passagens, arquivamento de projetos de lei impopulares e colocação na pauta de votação de outros com benefícios sociais, idealização de uma consulta popular....Aqueles que até um mês atrás pouco (ou nada) enxergavam os reclames sociais, embriagados pela sensação de poder que os altos cargos propiciavam, repentinamente aprimoraram sua acuidade visual e desceram rapidinho as escadas da realidade. O interessante foi que praticamente todos os gestores falaram mais como um manifestante do que como um co-responsável pelas ausências do Estado. Faltou pouco para eles irem também para as manifestações, com cartazes nas mãos e as caras pintadas.
      Tirando esta quase manifestação dos gestores, de lá para cá já ocorreu a dos caminhoneiros, profissionais da saúde, professores universitários, moradores de conjuntos residenciais. Provavelmente virão muitas outras. Acredito - e torço - que estamos descobrindo a força da coletividade, formando multidões não apenas nos estádios de futebol e shows musicais, mas nas ruas, reclamando e intimidando os que assumiram o compromisso com o bem comum. Isso mesmo, intimidando! Não se trata de uma apologia à baderna e à anarquia, nem uma concordância ou incentivo à destruição ocorrida, mas da constatação do surgimento de um fenômeno comportamental coletivo, que apresenta tendências inevitavelmente primitivas e imprevisíveis. E com os recursos tecnológicos atuais, que estimulam a formação de grupos virtuais e a expressão de opiniões, dificilmente este comportamento social desaparecerá. Ao contrário, o que vemos no mundo são manifestações frequentes e com importantes impactos políticos. Então, aos representantes  do povo, um aconselhamento psicológico: embora estejamos no século 21 - sendo educados com valores morais e religiosos, rodeados de tecnologia em casa, no trabalho e nas relações, usufruindo de um ambiente com significativa liberdade de opção e expressão, tendo acesso constante a um volume imenso de informações -, a força e, consequentemente, o medo ainda fazem parte da essência humana, seja ela manifestada individual ou coletivamente. Por isso, abram os olhos, porque parece que a massa sentiu levemente o gosto do poder!

terça-feira, 21 de maio de 2013

Sem (ou cem) consciência (s)?

     A leitura de assuntos relacionados à neurociência e o contato com pessoas que apresentam disfunções cerebrais devido a traumas cranianos, uso de drogas, epilepsia refratária e síndromes demenciais nos colocam diante de alguns quadros tristes, alegres e outros interessantes. Recentemente, procurando artigos sobre níveis de processamento cognitivo e construção da consciência, reli algo sobre a habilidade de ver coisas não estando consciente delas. É a visão cega: quando uma pessoa, demonstrando consciência em perceber todos os estímulos, exceto os visuais, consegue desviar dos obstáculos a sua frente. Ocorre quando há lesões bilaterais do córtex visual primário do cérebro, onde a visão é experimentada conscientemente. Na visão cega, a capacidade de evitar tropeços e quedas é atribuída a região subcortical - provável vestígio de um sistema visual primitivo, cujo objetivo era simplesmente favorecer à sobrevivência e não apreciar as obras de Picasso (Carter, R. 2003). Entretanto, esse fenômeno sugere mais: que o pensamento, assim como a percepção sensorial, apresenta estágios ou níveis de processamento, mas nem todos conscientes.
     Diariamente produzimos uma quantidade imensa de pensamentos - dizem que entre 40 a 60.000 -, impossível de vivenciá-los, em sua totalidade, de forma consciente. Para otimizar o processamento de informações e, consequentemente, a adaptação e a sobrevivência da espécie, foi desenvolvido um tratamento diferenciado para os estímulos novos e repetitivos. Quando iniciamos um novo aprendizado - dirigir um veículo, por exemplo -, precisamos estar bem conscientes e atentos. Nas primeiras aulas temos que perceber vários estímulos (visuais, sonoros, táteis), planejar e decidir ações (ligar o carro, passar a marcha, acionar a seta, acelerar) e monitorar eventos (motorização do veículo, posicionamento em relação à via e aos outros, etc). Isto implica no funcionamento de várias regiões cerebrais (principalmente os lobos frontais), com uma ampla e dispendiosa atividade nervosa. Entretanto, à medida que o estímulo se repete e a aprendizagem é estabelecida, a resposta tende a ser facilitada, não necessitando mais de tanta concentração mental e, consequentemente, de todo aquele maquinário cerebral. O comportamento torna-se automatizado. Em geral, quanto mais desenvolvida a aprendizagem de um determinado procedimento ou assunto, menos concentrados precisamos estar para realizá-lo ou debatê-lo, respectivamente. Se assim não fosse, ao conduzirmos nosso veículo para o trabalho ou passeio, precisaríamos estar, todo dia, muito conscientes e atentos aquele conjunto de providências relativas à condução veicular. Imagine se acontecesse a mesma coisa com todas as atividades que fazemos cotidianamente e que achamos tão simples realizá-las (e são porque as fazemos "sem pensar"). Provavelmente na metade do dia já estaríamos bem desgastados mentalmente e a nossa aparência não seria uma pintura.  Porque é impossível processar toda a demanda diária de estímulos e respostas com o mesmo nível de consciência e prontidão mental.
      Na década de 90, LeDoux  já apontava para a existência de dois principais circuitos da emoção: o trajeto rápido, com um menor percurso neuronal entre o tálamo e a amigdala, que interpreta estímulos e desencadeia comportamentos emotivos sem a participação da consciência; e o trajeto lento, com um maior percurso de neurônios entre o tálamo e o córtex, com uma percepção detalhada e comportamentos mais elaborados. Segundo o pesquisador "não é necessário que saibamos exatamente o que uma coisa é para que saibamos que ela pode ser perigosa". Em outros tempos, num ambiente extremamente selvagem e imprevisível, se não fosse o trajeto rápido da emoção provavelmente a espécie humana seria encontrada apenas fossilizada ou em pinturas rupestres.
      A partir destes eventos - visão cega, comportamento automático e circuitos da emoção - fica caracterizada a  nossa capacidade de responder a estímulos sem estar plenamente consciente deles, ou melhor, fica evidenciada a atividade mental num espectro de consciência. Ou ainda como uma sobreposição progressiva de percepções, emoções, lembranças e decisões que, ao longo da evolução, nos proporcionou habilidades - como a de responder de forma rápida e precisa ("reflexos"), ter reações inesperadas em momentos de perigo extremo -, mas também limitações, como a exagerada programação de automatizar comportamentos, comprometendo a memória, e a vulnerabilidade de perder o controle e agir de forma desnecessariamente agressiva. Sem ignorar, endeusar ou demonializar, é possível tirar proveito desse aspecto ancestral de humanidade, lembrando de escutá-lo no silêncio e considerá-lo cotidianamente. Senão, teremos realmente uma visão cega.

segunda-feira, 22 de abril de 2013

A influência da vida moderna na qualidade dos relacionamentos



       A convite do meu irmão mais velho, estive no último dia 13 com um grupo de casais, que escolheu o título desta postagem como assunto do encontro. Ele também me pediu que incluísse na apresentação o uso dos recursos tecnológicos e das mídias sociais, percepção e uso do tempo, entre outras coisas atuais. O interessante é que também nesses dias vinha lendo a edição especial da Revista Mente e Cérebro, intitulada " O Segredo da Decisão", que descreve algumas pesquisas recentes de como realizamos as pequenas e grandes escolhas, seja no amor, na família, no trabalho, na vida social, na hora de comprar e na alimentação. No dia do encontro, após aguardar alguns minutos a chegada dos participantes - que foram transportados em modernos automóveis - e saborear um lanche com uma grande variedade de pratos - provavelmente proporcionado por sofisticados eletrodomésticos - iniciei a palestra solicitando que o grupo descrevesse a vida moderna. Correria, inúmeros equipamentos eletrônicos, comprometimento da interação entre pais e filhos, falta de tempo... Foram muitas as características atribuídas, porém todas negativas! As pessoas só relataram aspectos prejudiciais e inadequados do momento histórico que vivemos. Ninguém levantou a possibilidade de haver, na vida moderna, algo de benéfico ou adequado.
      Não há como negar o exagero contemporâneo - estimativas indicam que estamos expostos a 30 mil anúncios de tv por ano, 7,3 bilhões de emails comerciais (spam), além de uma quantidade avassaladora de informações jornalísticas e científicas, acrescida de uma infinidade de novos produtos e serviços constantemente oferecidos -, nem a dificuldade de se fazer escolhas em meio a uma oferta tão abundante. No nosso cotidiano não faltam situações que prometem prazer imediato, exigindo consequentemente uma maior capacidade de resistir a tentação e manter o autocontrole (a conhecida batalha entre o impulso e a reflexão; anjinho x diabinho). O problema, entretanto, é que o ato de refletir, em termos neurofisiológicos, é complexo, lento e dispendioso, o que já não acontece com a atitude impulsiva (que necessita apenas do "tico e teco"). Por isso somos mais vulneráveis aos desejos. E diante de tantos desafios e atividades que a modernidade nos impõe, o tempo e a disposição mental - fundamentais para a reflexão - são cada vez mais raros. Em relação a isto, a Mente e Cérebro destaca que "os impulsos influem mais em nosso comportamento quando dispomos de poucos recursos mentais para a reflexão". Um dos artigos da revista ilustra que é mais difícil para uma pessoa resistir a um almoço calórico após algumas horas envolvida numa entrevista de trabalho, do que se a manhã fosse menos sobrecarregada psicologicamente. Ou seja, a diminuição da reflexão - olhar para dentro - traz grandes prejuízos ao comportamento humano, pois compromete as metas de longo prazo, não só na reeducação alimentar, mas na aprendizagem em geral,  seja ela acadêmica, social, existencial. Na edição "O Segredo da Decisão" as pesquisas indicam que a reflexão é essencial para construir memórias e conferir sentido aos acontecimentos, assimilar valores morais e digerir o que foi aprendido. Diz ainda que preencher o tempo com tarefas como internet e tv atrapalha a dispersão natural e necessária do cérebro (crianças motivadas a desfrutar o tempo livre tem menos problemas de ansiedade, melhor desempenho escolar e demonstram melhor capacidade de planejar o futuro).
          Por outro lado, não há como negar também os ganhos que a vida moderna vem nos proporcionando, tanto no plano individual  como no coletivo: equipamentos que promovem a comodidade e o conforto sensorial, tratamentos mais eficientes para doenças, aumento da expectativa de vida, democratização do acesso a informações e serviços, encurtamento de distâncias, maior variedade de opções de trabalho, compartilhamento de idéias, mudança de paradigmas, interação e mobilização sociais... Neste contexto, a grande protagonista das modificações tem sido a tecnologia, que embora está geralmente associada a complexos equipamentos, significa essencialmente um jeito especial de se fazer algo ou um conjunto de técnicas e conhecimentos usados para resolver problemas ou, ao menos, facilitar a solução deles.
        Escrevendo esta postagem e lendo a definição de tecnologia foi que atentei para o maior desperdício de oportunidade no encontro de que participei: os casais que estavam presentes faziam parte de um grupo religioso (católico). Mesmo considerando o meu desconhecimento no assunto, poderia ter aproveitado o momento para arriscar a dizer que os ensinamentos de Cristo foram, provavelmente, o instrumento tecnológico de maior impacto na humanidade. Sua divulgação ocorreu numa época em que o padrão era ser impiedoso, amedrontador, hipócrita ou subserviente. Com a proposta de resolver problemas humanos, Ele apresentou a técnica e os conhecimentos com a mais alta tecnologia em inteligência emocional: através da palavra - e não da violência - demonstrou o que há de mais moderno na área do comportamento, ao ensinar a perdoar e amar ao próximo. Sendo assim, não precisamos temer as tecnologias, nem crucificá-las. Umas mais, outras menos, com reflexão podemos utilizá-las para proporcionar qualidade aos nossos relacionamentos. Porém difícil, às vezes, é entender o manual e seguir as instruções!

sexta-feira, 15 de março de 2013

Máquina do tempo

      Neste último sábado me reuni com um grupo de pessoas que há muito tempo não encontrava: meus colegas de faculdade. O motivo foi a comemoração do aniversário de 18 anos da nossa formatura em psicologia. Durante todo este período encontrei, em raras oportunidades, apenas com algumas pessoas. Por isso, reencontrá-los, após quase duas décadas, foi muito bom! E mesmo não sendo possível juntar toda a turma, foi muito agradável receber em casa os que puderam ir, tornando aquele dia inesquecível!
      A tarde que passamos juntos foi repleta de alegria, compartilhamento de fotos e lembranças, brincadeiras, altas gargalhadas, algumas fofocas inevitáveis e muita, mas muita descontração (sem falar do sururu, filé de siri, camarão, churrasco  e outros quitutes que aumentaram a nossa plenitude). Foram recordadas tantas coisas já vividas que o passado e o presente se misturaram na minha cabeça e, em alguns momentos, fiquei sem saber se estava lá ou aqui. Pois, com as lembranças, vieram também emoções e comportamentos juvenis, tornando-me (e acredito que os colegas) - por algumas horas - novamente um universitário.
       Foi possível também se aproximar um pouco da vida de cada um: alguns casados, outros solteiros; uns com filhos e outros não; os que permaneceram na psicologia e os que encontraram diferentes caminhos profissionais. Interessante também foi possibilitar que meus filhos conhecessem um pouco da minha  história de maneira diferente, tendo um contato mais próximo com os personagens e acontecimentos ocorridos, despertando neles a curiosidade (Por que te chamavam de gg, perguntou o mais velho? O que vocês faziam na faculdade, questionou o meu caçula? Aquele Roberto é muito engraçado, disse a minha garota).
      À noite, após nos despedimos, ainda envolvido por aquele momento, comecei a lembrar de outras turmas que convivi e lugares que frequentei:  a escola pública (CEPA), onde cursei o ensino infantil e fundamental, o Colégio Marista de Maceió, onde fiz o ensino médio, o grupo do quartel (NPOR - Núcleo de Preparação de Oficiais da Reserva), o curso de Neuropsicologia, na Puc de Porto Alegre. À medida que ia recordando estes períodos, pude perceber o quanto ficou para trás, principalmente aquelas situações de grande expectativa, como o período de provas, proximidade dos jogos e viagens, apresentações escolares, acampamentos militares, etc. Sem falar das pessoas, que não as encontro há mais de 10, 20 ou 30 anos e que, possivelmente, nunca mais as verei. Onde estarão os meus amigos do time de futebol da 4a. série, os atletas do handebol e os companheiros do quartel? Embora poucos, mas felizmente tenho uns amigos que têm me acompanhado ao longo da vida, ajudando-me a tornar mais fortes determinadas  lembranças da minha história.
      E por isso, repito que foi muito bom reencontrar os amigos da faculdade! E foi bom também porque pude reencontrar comigo mesmo, só que bem mais jovem. Reviver o meu jeito de pensar e sentir a vida com vinte e poucos anos.   Imagine se pudesse me reunir com aquelas minhas outras turmas do passado e dizer um alô  para o Jerônimo de 5, 10 e 15 anos.  Seja com comemorações, psicoterapia ou simples reflexões, é salutar - e bastante agradável - que possamos contactar com a nossa história, seja para desfrutar ou para amenizar certas experiências, numa ajuda mútua entre o passado e o presente.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Renovando o ar

      Após um longo período longe dos rabiscos, retorno - mais enferrujado e endurecido no manejo com as palavras - a comentar certas informações e acontecimentos. Foram mais de dois meses sem escrever uma linha, embora não faltassem assuntos que me provocassem questionamentos, incômodo ou encantamento. Andando nas ruas, lendo algo, assistindo à tv, convivendo com familiares e amigos, e atendendo no consultório: várias vezes fiquei fora do ar por alguns instantes diante de algo que merecia uma maior atenção e ponderação. Mas, mais uma vez, no meio da multidão fiquei mergulhado no fluxo de atividades do dia-a-dia. Na correria de final de ano, foram várias providências, festividades, viagem, férias,  preguiça... E tive momentos bem agradáveis, rodeado de pessoas queridas, cenários paradisíacos, mas sentindo também falta dos meus outros momentos, com os meus botões... É quando aspiro outros ares e tento visualizar o horizonte. Semelhante a uma baleia que, para viver bem embaixo d'água, precisa regularmente emergir para respirar. É um afastamento da correnteza cotidiana. E parece que está cada vez mais veloz e difícil de não ser engolido por ela. Será pelo acúmulo de atividades, sejam físicas ou mentais, que estamos acrescentando no nosso dia? Ou pelo volume aparentemente excessivo de informações que dizem que precisamos obter? De vez em quando escuto alguém dizer que gostaria que o seu dia tivesse mais de 24 horas ou ainda que seria muito interessante se ela fosse duas pessoas ao mesmo tempo, para poder realizar todos os projetos idealizados. Estamos impregnados de velocidade: na crescente dificuldade de permanecermos sossegados quando não há o que fazer, quando não conseguimos controlar o volume e rapidez dos nossos pensamentos, na impossibilidade de suportar a espera da vitória, no breve período que saboreamos as sensações agradáveis e na pressa angustiante que desejamos o término do sofrimento (existem coisas que estão fora do nosso controle e tem o seu ritmo próprio). E é bom lembrar que, na nossa mente, um evento (estudar, trabalhar, viajar, comprar) não é simples e rapidamente salvo numa pasta, como num computador. A situação é primeiro vivenciada emocionalmente e compreendida cognitivamente. Em seguida é editada e vagarosamente memorizada, associada a outros eventos semelhantes. A conotação afetiva (alegria, tristeza, raiva, medo) que atribuímos a cada episódio  não só influencia a percepção e memorização dessa experiência, mas repercute no funcionamento geral da mente, interferindo nas percepções e decisões que ocorrerão em seguida. De alguma forma todo conteúdo adquirido por nós passa a fazer parte da gente. Sendo assim, precisamos ficar mais atentos à qualidade do que presenciamos, seja nos relacionamentos, na mídia ou nos escritos. Porém, na rapidez com que passamos nossos dias é pouco provável que consigamos refletir e selecionar. Por isso, temos que evitar permanecer muito tempo na vazão dos episódios, para não ficarmos presos às correntes. Que cada um encontre o seu jeito de emergir e respirar, aproveitando para contemplar a paisagem.

domingo, 18 de novembro de 2012

Fazendo história

        Nas duas últimas vezes que fui ao cinema com a esposa, na expectativa de assistir a um bom filme, voltei extremamente frustrado - e até irritado -, diante das produções medíocres apresentadas.  Como frequentemente assistimos à sessão das 21 horas (período que geralmente estou concluindo as atividades para realizar uma outra prazerosa atividade  - dormir ), fico torcendo para que as horas perdidas do meu saboroso sono sejam compensadas com momentos de emoção e reflexão. Entretanto, neste último mês as escolhas foram terríveis, ao ponto de decidir voltar para a casa assim que terminou ... a pipoca (bem antes do final do filme). Bastante desconfiado - pensei até em não comprar a pipoquinha - resolvi nesta última quinta-feira arriscar novamente: comprei o bilhete, entrei na sala, sentei-me na H7, assisti... E foi fantástico! "De Pai Para Filho", um filme realmente arretado, e emocionante! Na biografia de Luiz Gonzaga, a pobreza, a discriminação, as frustrações, as dificuldades, o sucesso, o fracasso e o reencontro com o filho me fizeram até parar de mastigar para acompanhar o desenrolar de uma grande história. Além de ouvir belas canções, relembrar alguns fatos históricos e presenciar uma formidável interpretação do elenco. Fui lembrando também da minha adolescência, quando escutava as músicas do Gonzagão e dançava quadrilha nas ruas e nas escolas, "guardando as recordações" de onde passei e "dos amigos  que lá deixei". A vida de Luiz Gonzaga foi realmente uma grande história, digna de um grande filme, que teve como protagonistas a rudeza, a paixão e o perdão.
        Há algum tempo venho observando com maior interesse as histórias das pessoas e as mudanças de enredo ocorridas nas últimas gerações (ver postagem anterior - Parabéns). Ao assistir à biografia do maior cantor nordestino, bem como de outras pessoas anônimas (pacientes), imagino que certos eventos e comportamentos parecem ser importantes na construção de uma história. Por isso, desejo (e espero estar contribuindo) que meus filhos tenham mais que momentos agradáveis nos seus dias: que eles tenham experiências, pois acredito que estas contribuirão para a formação de alguns valores e atitudes que nortearão os seu caminhos. Que venham as alegrias e tristezas, mas que não falte paixão - pelas pessoas, mas também pelas idéias. E que, como Gonzaguinha, saibam perdoar e ver "que a vida devia ser bem melhor e será, mas isso não impede que eu repita, é bonita, é bonita e é bonita". 

domingo, 4 de novembro de 2012

Parabéns


         Na quarta-feira passada, 31 de outubro, fui comemorar com familiares os oitenta anos do meu pai. Embora eu não tenha testemunhado praticamente a metada de sua vida - quando eu nasci ele tinha 37 anos - sei que foram anos de muitas dificuldades: família de poucos recursos financeiros e muitos filhos (mais de 10), com uma mãe especializada nos cuidados maternos e um pai muito habilidoso nos números e nas palavras - orgulhosamente, foi um dos pioneiros no jornalismo alagoano -, mas que precisava trabalhar os três horários para sustentar a casa. Sendo o mais velho dos homens, a responsabilidade com as necessidades do lar foram precocemente assumidas pelo meu velho, que transbordava de disposição e compromisso familiar. Num ambiente com fartura de informações, entusiasmou-se progressivamente pelas leituras diversas, culminando nas graduações de Filosofia e Direito. Nos últimos quarenta anos os desafios e obstáculos continuaram, com significativas perdas (emocionais) e alguns ganhos, mas ele sempre enfrentando com um imenso senso de honestidade e responsabilidade - suas principais características. Sem falar da admirável e inquietante inclinação pelas coisas simples e naturais, e do desapego a ideologias e modismos.
         Tirando as peculiaridades e outras limitações pessoais, a história de meu pai é semelhante à de muitos pacientes idosos por mim atendidos: um início de vida com muitas restrições, em famílias numerosas e geralmente pobres, longos momentos de sofrimento, participação precoce nos serviços de casa, forte espírito de coletividade entre os familiares, a honestidade como vaidade e o sucesso obtido de forma lenta e gradual. Entretanto, num outro grupo de pacientes, tenho escutado o relato de experiências familiares bem diferentes: lares com poucas crianças, com a geladeira e armários abarrotados de alimentos, parentes e funcionários geralmente tentanto satisfazer imediatamente a maioria dos desejos dos menores, um esforço acentuado para manter o filho alegre e impedir o seu sofrimento, pouca (ou nenhuma) colaboração das crianças e adolescentes nas atividades caseiras, a colocação da inteligência e da competitividade como objetivos maiores na formação da prole, e o ato de comprar adquirindo status de principal fonte de prazer.
        Pelo que percebo - e dizem os especialistas - as significativas mudanças econômicas ocorridas nas últimas décadas no país vêm, gradativamente, modificando o nosso comportamento. Embutidos nos novos produtos e serviços, estão os recentes valores sociais: a intensidade, a velocidade e a comodidade. Na relação com as pessoas, objetos e acontecimentos, temos sido influenciados a considerar como positivas as vivências intensas, rápidas e cômodas. Mas, qual o verdadeiro impacto destas modificações no nosso comportamento? Quais habilidades e dificuldades serão fortalecidas? A que tipo de distúrbios ou transtornos estaremos vulneráveis com tais alterações? Contribuirão para favorecer a serenidade e sabedoria, ou a ansiedade e a angústia? Com todos os exgeros e equívocos, parabéns a você meu pai, e a sua geração!
 

     

domingo, 7 de outubro de 2012

O grande encontro

      Quando estamos criança, ficamos de cara feia ou choramos quando nossos pais nos proibem de realizar todos os nossos desejos e fantasias. Na adolescência, mais fortes e inteligentes, discordamos de muitas idéias e atitudes dos coroas, chegando ao ponto de discutirmos e até nos revoltarmos; além disso, nos sentimos extremamente entediados com a lentidão dos dias, querendo que o tempo passe rápido para chegar a tão esperada maioridade e fazermos muitas coisas diferentes. Depois de uma longa espera estamos adultos e com liberdade de escolhermos nossos caminhos: de preferência que nos levem a experiências intensas e variadas. É a fase em que dispomos de um corpo rígido e uma mente flexível.
      Quando aprofundamos um relacionamento amoroso, progressivamente a outra pessoa começa a questionar e reclamar de certas atitudes nossas que não percebemos - mas que também nos desagradavam quando identificávamos em nossos pais. Com a chegada dos filhos, mesmo com os inúmeros livros lidos e entrevistas assistidas, sentimos a necessidade de repetir com os rebentos vários ensinamentos vividos na nossa infância, tornando-nos agora seus ardorosos defensores. Estando na meia idade, envolvidos em muitas atividades e responsabilidades, inclinamo-nos a ficar fortemente automatizados e pouco flexíveis. Se não aprendermos com as situações da vida, orientação religiosa ou com psicoterapia, caminhamos gradativamente para o enrijecimento, incorporando comportamentos que há algum tempo nos incomodavam . É a época em que o tempo passa mais rápido: tão veloz que chegamos na terceira idade sem perceber. Percebemos então as várias mudanças ocorridas em nós e no ambiente e, se não encontrarmos sentido nas atividades e ocupações, os ponteiros do relógio vão se arrastar lentamente. É o momento que ficamos mais apegados  - e até dependentes - a conceitos, sentimentos e hábitos antigos, alguns inadequados. É uma fase delicada porque, ao contrário da juventude, tendemos a ter um corpo maleável e uma mente rígida ("cabeça dura"); a nos relacionar mais intensamente com os conceitos do que com os estímulos do ambiente. Os valores podem petrificar e dificultar muito a nossa caminhada, tornando-a desnecessariamente pesada e dolorosa. Além disso, nossos filhos ficarão irritados, ansiosos ou tristes diante das nossas teimosias e, provavelmente, repetirão o mesmo padrão de comportamento com as futuras gerações.
      Não desperdicemos tempo e oportunidade; vamos interagir e compartilhar o que temos, seja a experiência ou a vivacidade, para seguirmos renovados e com alguma serenidade, pois as épocas e os costumes são diferentes, mas o percurso é o mesmo.
 

domingo, 23 de setembro de 2012

De olhos bem abertos

      Quando fui estudante de psicologia fiquei muito entusiasmado com as leituras de PNL (Programação Neurolinguística), principalmente com o estudo dos movimentos dos olhos, que indicavam recordação, criatividade e até mentiras. Apesar do meu entusiasmo inicial ter se deteriorado por não encontrar sustentação nas publicações científicas, continuei olhando... Em 2000 fui para Porto Alegre fazer pós-graduação em Neuropsicologia, em um programa de cirurgia de epilepsia no Hospital São Lucas. Os pacientes candidatos à cirurgia geralmente apresentavam lesões no lobo temporal mesial e tinham como principal queixa cognitiva o esquecimento - pela importante participação do hipocampo na retenção de estímulos a longo prazo. Durante as avaliações  observei inúmeros pacientes demonstrarem o que parecia ser um padrão de movimento ocular durante a evocação nos testes de memória. Por volta de 2004 assisti a uma reportagem sobre a EMDR -Dessensibilização e Reprocessamento através dos Movimentos dos Olhos -, técnica psicoterapêutica inicialmente aplicada em pacientes com stress pós traumático e atualmente utilizada em outros transtornos. Embora não tenha formação neste método, a leitura de alguns artigos serviu para aumentar a convicção de que a movimentação ocular tem bem mais utilidades do que a vista alcança. Até quando dormimos nossos olhos se movimentam e ajudam a mente (fase REM do sono, caracterizada por movimentos rápidos dos olhos, intensa atividade cerebral, ocorrência de sonhos, relaxamento muscular acentuado e consolidação da memória). Ao longo dos últimos anos, avaliando o desempenho de idosos nos testes de memória declarativa, continuo a observar diariamente uma sugestiva relação entre os movimentos que os olhos executam quando a pessoa está tentando se lembrar, e os resultados alcançados nos instrumentos. Sem tempo e estrutura para fazer pesquisa, tenho então tentado acompanhar a literatura sobre o assunto e, felizmente, vários trabalhos tem apontado que os movimentos bilaterais dos olhos efetivamente têm efeito na memória (Parker A., Dagnall N., 2012, 2009; Samara, Z., Elzinga, B.M., 2011; Gunter, R.W., Bodner G.E., 2008; Ehrlichman H., Micic D., Sou A., Zhu J., 2006). Segundo os artigos, os movimentos que os olhos realizam quando uma pessoa busca uma recordação servem para aumentar a ativação da região pré-frontal, estimulando ainda a interação entre os hemisférios cerebrais. Como consequência, um melhor desempenho da memória de longa duração (episódica). As publicações afirmam que a evocação de um episódio é melhorada quando a pessoa realiza tais movimentos (quando comparada com a ausência deles); que a memória das crianças e adultos são mais precisas quando precedidas desta coreografia ocular. Já existem até equipamentos de rastreamento ocular (eye tracker), que são utilizados no estudo de dificuldades cognitivas - esquecimento, dislexia -, bem como no desenvolvimento de sites, disposição adequada de produtos nas prateleiras de supermercados e vitrines de lojas. Os olhos já são utilizados ainda para comandar (vídeogames e computadores que reconhecem movimentos oculares e os transforma em comandos).
      Embora não seja possível identificar a mentira no olhar de uma pessoa - como propagavam alguns palestrantes de PNL -, há evidências que indicam que os olhos não servem apenas para captar estímulos visuais (convertendo-os em impulso nervoso) e expressar a emoção no olhar: seus movimentos ativam áreas cerebrais contralaterais, favorecendo o funcionamento cognitivo. Mas será que a partir  dos movimentos oculares é possível inferir sobre o desempenho da memória episódica de um indivíduo? Até que ponto o movimento dos olhos reflete o movimento (dinâmica) da mente?  Havendo movimento mental, haverá consequentemente um espaço cognitivo? Com passos geralmente lentos e curtos - apesar de firmes - a ciência encontrará as respostas para estes e outros questionamentos. Até lá irei acompanhando as pesquisas - tentando implementar alguma - mas, como não estou num ambiente exclusivamente científico, não posso deixar de dizer: os olhos são realmente as janelas da alma, ou seja, são a interface entre ambientes e realidades distintas; a abertura que permite a passagem de elementos... Por enquanto é melhor fechar, ou melhor, parar por aqui.

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Memória de trabalho

      Quando uma colega - Karine Martins - me convidou para apresentar uma palestra na V Jornada Alagoana de Neuropsicologia, rapidamente me lembrei das crianças e adultos do consultório que reclamam da falta de memória (na escola, no trabalho e nas atividades cotidianas). Mas não estou falando dos grandes esquecimentos  - do que viu e ouviu -, mas sim dos pequenos (nem por isso desagradáveis) lapsos de memória. Aqueles que ocorrem quando estamos lendo um texto e deixamos a informação escapar, necessitando reiniciar a leitura, ou quando tentamos manter um número ou uma palavra na consciência para utilizarmos em seguida e a perdemos rapidamente. Por isso resolvi falar sobre a "memória de trabalho e o desempenho cognitivo", a fim de divulgar as características do seu funcionamento e os incômodos de um déficit nas atividades diárias. Foi aí também que percebi que, mesmo tendo escrito várias postagens sobre esquecimento, não dei atenção que a memória de trabalho merece.
      A quantidade de estímulos detectados pelos receptores sensoriais (olhos, ouvido, pele, músculos) e direcionados às regiões encefálicas é muito grande. A cada segundo, inúmeros dados visuais, auditivos, táteis, cinestésicos são sentidos, porém nem todos são percebidos (a percepção é a interpretação e compreensão consciente de parte do que foi captado pelos sentidos). Mesmo com esta primeira triagem efetuada pelo cérebro humano, o fluxo de informações é contínuo na vigília, oriundo das aulas diversas, informes dos letreiros, faixas e outdoors da cidade, momentos de conversas com familiares e amigos, tarefas e providências realizadas durante o período de trabalho, leitura de livros e revistas, conteúdo dos programas da tv (jornais, novelas, filmes), detalhes dos transeuntes que circulam no campo visual, informações da internet e muitas outras fontes. Durante as 16 ou 18 horas que passamos acordados, somos expostos a uma quantidade exagerada de informações, e não há como fixá-las totalmente. Ou melhor, não é necessário memorizar tudo, porque nem tudo é importante.
      A mente humana disponibiliza, principalmente, dois tipos de memorização: longo e curto prazos. São elas a memória declarativa (ver outras postagens anteriores) e a de trabalho, respectivamente. Na memória de trabalho (MT) o importante é manter uma pequena quantidade de estímulos disponível; lidar com alguns pedaços de informação simultaneamente; operacionalizar e proporcionar o trabalho mental. Dito de uma maneira diferente, é a nossa mesa de trabalho; "local" onde dispomos o material, nos debruçamos e trabalhamos. Em seguida, colocamos o refugo no lixo, limpamos a mesa para um próximo serviço. Quanto maior a bancada, mais material podemos organizar sobre ela e um trabalho de maior dimensão poderá ser realizado. Por outro lado, quanto menor, mais limitada a capacidade de manipulação dos elementos e, consequentemente, menor produção (poderíamos ainda chamá-la de "pulmão mental",  por proporcionar o fôlego necessário ao mergulho cognitivo - quanto maior o fôlego, mais profundo podemos ir na atividade e mais tempo conseguimos permanecer submersos). A memória de trabalho é então a habilidade cognitiva que nos possibilita assistir a uma aula, ouvir o professor e manter suas explicações encadeadas e disponíveis; propicia a realização de um cálculo mental, visualizando os números e as operações aritméticas no seu esboço visuoespacial; na leitura, sustenta a fixação das palavras até a finalização da frase, bem como da ideia, até o término do parágrafo, sem perder o fio da meada;  numa reunião de trabalho ou assistindo ao filme nos mantém prontos (com o auxílio da atenção) para, simultânea e repetidamente, escutar e ponderar; na necessidade de gravar um número de telefone - na ausência de um caderno -, essa memória utiliza sua alça fonológica e "anota" os números temporariamente (se não utilizarmos outras estratégias para transferir a informação da memória de curta duração  para a memória declarativa ou de longa duração, o conteúdo será "descartado na lixeira", esquecido - como o nome de uma pessoa que acabamos de conhecer). Na memória de trabalho a informação será eterna enquanto durar a atividade mental  - pelo menos é o que deve acontecer.
        Algumas pessoas porém demonstram restrições na memorização transitória, provavelmente decorrentes de problemas genéticos e/ou ambientais. Espectro autista, transtorno de atenção, dislexia, retardo mental, transtornos ansiosos e afetivos são alguns exemplos de distúrbios que podem manifestar dificuldades nesse tipo de memória. Nestes casos, o déficit na MT geralmente resulta em comprometimento importante na aprendizagem. Mas, mesmo nas crianças e adultos que não apresentam transtornos, a atenuação do seu funcionamento poderá reduzir o desempenho geral, comprometendo a produtividade na atividade acadêmica, no exercício profissional e nas providências cotidianas. A memória de trabalho é um dos principais termômetros do funcionamento mental; ela também é protagonista no cenário cognitivo e ...  sobre o que eu estava falando mesmo?

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Olimpíadas 2012, 2013, 2014...

      Nestes últimos 15 dias participei de uma maratona ... de atividades. Além das habituais tarefas e compromissos profissionais, familiares e sociais, tornei-me um telespectador assíduo das Olimpíadas de Londres, acompanhando, por inúmeras horas, as competições de Futebol, handebol, voleibol, atletismo, hipismo, basquete, iatismo e ginástica. E não foi fácil pois, assim como os atletas, também tive que suar bastante, planejando os meus dias (para conciliar e incluir na minha agenda diária o máximo de jogos), ficando atento no consultório às manifestações de vitória vindas das ruas (gritos, buzinaço, fogos), procurando ser eficiente na resolução das providências e mostrando rapidez no retorno ao lar. Em casa, tive que desagradar a esposa, ao tumultuar um pouco - acho - os necessários hábitos cotidianos, alimentando-se apressadamente e convocando os filhos para a bagunçada torcida no sofá. Além disso, por duas semanas sacrifiquei heroicamente a minha sagrada siesta  das 13h, por coincidir com o horário de jogos importantes. Até os rabiscos de que gosto de realizar aos domingos foi comprometido pela minha dedicação ao evento. Mas, valeu a pena! Foi um show de imagens e emoções!
     Como ex atleta de esporte amador, tendo praticado handebol há 25 anos, assistir aos jogos me fez reviver os torneios participados, a ansiedade pelos jogos, o espírito de união do time, a angústia dos momentos decisivos, a "força" que vinha dos gritos da torcida amiga, a tristeza das derrotas e o êxtase das vitórias. Embora bem distante da qualidade técnica dos atletas olímpicos e do glamour de Londres, foram momentos inesquecíveis! Momentos iniciados aos 12 anos, como uma brincadeira nas aulas de educação física numa escola pública, seguindo-se com os primeiros arremessos desajeitados na escolinha de handebol, suportando a reserva por um ano inteiro, até ser promovido como titular do time a partir do ano seguinte. Até os meus 18 anos, foram incontáveis dias de treinamento - ocorridos ao menos três vezes por semana -, com exercícios físicos repetitivos e exaustivos, com dores nas pernas e braços ao despertar, lesões no joelho e a conciliação com os estudos escolares. Quando nas competições em outros estados, ficava em alojamentos com acomodações improvisadas nas escolas, dormindo em colchões no chão e malas espalhadas pela sala de aula, jogando até duas partidas diárias, preenchidas com empurrões, pancadas e cotoveladas dos adversários, gritos do treinador, tensão constante, sede, cansaço...  Tudo isto em busca por grandes medalhas: força, destreza, compleição física, status e, é claro, o delicioso sabor da vitória.
     Mas a riqueza da prática esportiva ultrapassa a utilidade de sublimar tendências humanas primitivas: através do doloroso treinamento - físico e emocional -, favorece o indivíduo a persistir diante da preguiça ou do cansaço, a suportar o sofrimento (sabendo que a dor diminui em alguns dias, após algumas compressas) e não se entregar facilmente com o desânimo. Assistir às Olimpíadas de Londres foi realmente empolgante: pelo desfile da bela variedade humana, na sua forma e comportamento; pelo espetáculo de força e de precisão; e pela valorização global de uma atividade humana naturalmente terapêutica, que tem a possibilidade de nos tornar mais hábeis nos movimentos do corpo e da alma.

domingo, 22 de julho de 2012

O terrível esquecimento

   
      Em 2009 realizei uma avaliação neuropsicológica numa pessoa de 50 anos, que reclamava de um intenso problema de memória. Trabalhando como executiva de uma grande instituição, viajando constantemente, participando de várias reuniões e cursos, afirmava que seu desempenho estava desmoronando: esquecendo dos compromissos agendados, dos eventos frequentados, das decisões tomadas e das novas informações adquiridas. Apesar de também manifestar o humor bastante deprimido - chorando constantemente, com uma perspectiva pessimista da própria saúde e demonstrando isolamento social - e do consequente prejuízo cognitivo (alterações da atenção, memória de trabalho e funções executivas, principalmente), os dados da avaliação indicavam deterioração cognitiva importante, sendo então encaminhada para a geriatria.
      Esta semana ela retornou, dizendo que, apesar da melhora no quadro geral, o esquecimento persiste. Com um exame de ressonância magnética revelando atrofia importante nas regiões temporais mesiais do cérebro (fundamentais na memória de longa duração), disse ainda que foi aposentada por invalidez naquele ano, após iniciar o tratamento medicamentoso no mesmo período - interrompido há algum tempo. Embora demonstrando momentos de lucidez, com o ânimo adequado e descrevendo alguns fatos ocorridos neste ínterim, inúmeras lacunas na evocação, reduzida fluência verbal e significativa imprecisão temporal dos acontecimentos foram observadas. Além disso, ao me fixar no seu rosto, percebi algo comumente encontrado em pacientes demenciados, que definiria como um "olhar alheio" e que, mesmo sem fundamento científico e possivelmente contaminado pela minha subjetividade, associo a um possível esvaziamento cognitivo. Seus familiares, tentando esquecer o problema e procurando levar uma vida normal com ela, "estimulam-na", pedindo repetida e até asperamente para se esforçar e se lembrar das coisas. O marido, visivelmente dedicado e companheiro, envolto de angústia, deixou escapar que não consegue aceitar a situação da esposa. Os filhos, segundo ele, embora amorosos, também se irritam com os rotineiros esquecimentos da mãe. E a paciente, interrompida na sua trajetória de experiências - profissionais, familiares, sociais - vai preenchendo seus dias com o que lhe resta de memória. Como se não bastasse a perda do trabalho realizador, das aspirações, do convívio com as pessoas, das lembranças da própria história, está perdendo algo essencial: o poder de decidir e, possivelmente, a felicidade (Felicidade é poder! - postagem do dia 07/08/2011).
      Apesar da alta escolaridade (pós-graduada), desempenho multifuncional (profissional, mãe, esposa, dona de casa) e das relações afetivas terem possibilitado o desenvolvimento de uma exuberante e vantajosa reserva cognitiva, o processo neurodegenerativo progride... E, com ele, a deterioração do que foi construído ao longo da história - lembranças, conhecimentos, hábitos, virtudes, defeitos. A demência é a perda da vida, em vida. Mas, felizmente, com o avanço da medicina, já é possível diluir essa perda por vários anos, e até décadas, aumentando a quantidade e a qualidade de vida dos pacientes. Para isso, é fundamental o diagnóstico precoce e a manutenção do tratamento, porque o processo é irreversível e progressivo. Que progressivo continue sendo também o conhecimento científico sobre as síndromes demenciais para que, num futuro próximo, histórias não sejam drasticamente interrompidas e que não seja destruída a mais valiosa lembrança do ser humano, sua individualidade.

domingo, 8 de julho de 2012

"Partícula de Deus"

                         


   Aproximadamente às 20:30h desta última quarta-feira, dia 04 de julho, após tomar uma quente e saborosa sopa  de legumes no jantar, fui me deitar preguiçosamente no sofá da sala, procurando um programa de televisão interessante e ameno, compatível com a despedida do dia. Sem opções e maior interesse, coloquei no rotineiro noticiário da noite... quando o entusiasmo do apresentador me fez sentar: era o anúncio da observação inédita de uma partícula subatômica, realizada pelo Centro Europeu de Pesquisa Nuclear, com grande probabilidade de ser  o "bóson de Higgs", apelidado de " partícula de Deus". Mesmo leigo no assunto, a euforia dos cientistas na divulgação dos resultados iniciais e, principalmente, as lágrimas do britânico Peter Higgs no auditório, quase cinquenta anos após a idealização da teoria, deixaram-me realmente emocionado. Que bela fotografia! Levantei imediatamente e, na internet, vi que a tal partícula daria origem à massa de todas as demais partículas e estava sendo perseguida pelos cientistas ao longo das últimas décadas. Parece que esta era a pesquisa mais importante que vinha sendo realizada pelo acelerador de partículas - LHC -, um aparelho construído ao longo de 27 quilômetros, entre a França e a Suíça, considerada a máquina mais poderosa do mundo. Com a mais alta tecnologia e os mais sofisticados instrumentos, o LHC é capaz de fazer colidir prótons (partículas que formam o núcleo de um átomo)  - para os mais amedrontados (não especialistas),  o acelerador poderia até gerar um buraco negro e destruir a terra.
Mas, mesmo diante da complexidade do maquinário e do sucesso da descoberta - já candidata ao Prêmio Nobel -, repito que a minha alegria resultou mais da felicidade demonstrada pelo pesquisador aposentado de oitenta e três anos, Peter Higgs. Alguém que em 1964, sem o aparato tecnológico atual, concebeu a hipótese vigente, utilizando basicamente sua mente, seu cérebro: um equipamento com mais de 100 bilhões de unidades funcionais, conectadas em redes, com praticamente infinitas possibilidades, funcionando durante as 24 horas, por mais de 25.000 dias (equivalente a 70 anos), fazendo uso principalmente de oxigênio e glicose e, mesmo sem sensores ultra-sensíveis, consegue realizar um diagnóstico adequado da realidade, não só "vendo" estruturas invisíveis, mas também fenômenos do passado e do futuro, ocorridos próximos ou anos-luz de nós, interna ou externamente, de maneira concreta ou abstrata. Esta sim é a máquina mais poderosa do mundo; na imensidão do universo, é realmente uma partícula divina! É o tipo de notícia que entusiasma e aquece por dentro, como a sopa.

domingo, 1 de julho de 2012

Ganhamos!


     Extremamente cansado e rouco, cheguei há duas horas de uma viagem de três dias, junto com a família, onde acompanhamos o campeonato de handebol do nosso primogênito, em Estância, Sergipe. No retorno, enquanto todos dormiam, eu dirigia, procurando o que olhar às margens da rodovia, para espantar o sono que me rondava. Flash dos inúmeros jogos assistidos, da gritaria dos familiares na torcida, da final disputada hoje pela manhã e da premiação de campeão recebida me ajudaram muito a manter o foco na estrada. Sentindo ainda a alegria dos acontecimentos vividos, fui recordando o meu tempo de atleta: também jogador de handebol, lembrei de alguns torneios e viagens, da bagunça nos alojamentos, das partidas eletrizantes, das arquibancadas repletas, dos companheiros, das derrotas e das vitorias. Ótimas lembranças, de grandes e inesquecíveis momentos. De volta ao presente e faltando ainda algumas centenas de quilômetros para finalizar a viagem, comecei a pensar sobre algo que me deixou preocupado na competição: em vários times, o número de pessoas no banco de reservas era reduzido. Do nosso lado não era diferente e, até o goleiro, que disputou o torneio em duas categorias - juvenil e cadete -, não tinha um substituto. Se tivesse ocorrido uma lesão durante os jogos, os dois times estariam bem encrencados. Nos intervalos dos jogos, conversando com alguns atletas e pais, disseram que, em certas escolas particulares, o número de estudantes que participam de esportes está diminuindo. Uma triste realidade que, infelizmente, venho percebendo também em Maceió. Obcecados exclusivamente pela formação acadêmica, determinados colégios vêm colocando a prática esportiva como atividade de segunda classe, principalmente no ensino médio. Será que desconhecem que o exercício físico melhora o desempenho mental, como  a atenção, memória, orientação espacial e funções executivas, por estimular a sinaptogênese (formação de novas sinapses nervosas) e angiogênese (produção de novos vasos) em áreas cerebrais relacionadas com a aprendizagem, como o hipocampo? Sem falar do extraordinário aprendizado emocional que favorece, aumentado a tolerância à frustração e o controle da impulsividade, desenvolvendo estratégias para lidar com a ansiedade, aprendendo a trabalhar em equipe, respeitando normas e regras, mantendo-se persistente numa meta e suportando realizar tarefas repetitivas (disciplina).
      Proporcionar, estimular e valorizar a educação física e o esporte em crianças e adolescentes é enriquecer suas histórias com experiências, algo que vem faltando na vida destas pessoas, embora bastante fortalecidas de tecnologia e informações. Na família, sozinhos ou com um único irmão, não exercitam vigorosamente a conciliação e o espírito coletivo; alguns pais, muito ansiosos ou desinteressados, oferecem-lhes um ambiente familiar pouco desafiador e bem diferente do mundo lá fora; cada vez mais confinados em apartamentos, não exploram os espaços que os quintais disponibizavam; com medo da violência, não correm na rua, nem são premiados com as aventuras no bairro; com tanto entretenimento virtual, estão suando menos; na sala de aula, o professor vem progressivamente perdendo a autoridade e o comprometimento, deixando  os alunos sem referencial. Apesar do discurso que tal processo já ocorreu em vários países desenvolvidos (também com incremento de preocupantes alterações comportamentais), é importante analisar os ganhos efetivos de uma preparação escolar essencialmente informativa. A vitória então seria obtida não apenas com o acesso rápido a uma boa faculdade, através de um treino técnico exaustivo (informações), mas também com o desenvolvimento tático, incluindo habilidades de autoconhecimento, empreendedorismo e resiliência, fundamentais para um sucesso progressivo e sustentável. De que adianta preparar um aluno para ser exclusivamente um grande competidor em notas escolares, com uma exuberante musculatura acadêmica, fazê-lo subir o pódio de um concorrido curso e, após alguns anos, ele iniciar uma maratona de frustrações e limitações, envolvendo a impulsividade, ansiedade e depressão? Isso não quer dizer que o handebol, basquete ou a natação deixem o atleta inatingível física e mentalmente, mas que provavelmente - junto com outras atividades familiares, religiosas, sociais, culturais - enriquecerão a formação do indivíduo, conferindo a ele um repertório maior de experiências e conduzindo ao amadurecimento: esta sim, uma das maiores medalhas que podemos conquistar!

domingo, 24 de junho de 2012

Precisa-se de explicações

Depois de vários anos, uma mãe me procurou no consultório para reiniciar a avaliação com seu filho que, desde aquela época - com três anos de idade -, já apresentava um comportamento atípico. O garoto retornou esta semana, após sete anos de sucessivos tratamentos, mas com pouco progresso acadêmico e social, segundo a genitora. Emocionada, disse que estava muito angustiada, não só pelo comprometimento dele na aprendizagem e no convívio com os pares, mas, sobretudo, pela falta de informações esclarecedoras e pela ausência de diagnóstico do seu filho. Mesmo atuando na área da saúde e procurando diariamente conhecer os transtornos de aprendizagem, escutar este relato, sendo pai também de uma criança especial com diagnóstico ainda indefinido, fez com que eu compreendesse perfeitamente o sofrimento da mãe. A informação, por pior que seja, confere uma dimensão à situação, ou seja, um tamanho do que se tem a enfrentar. Na ignorância, por não termos o conhecimento, o problema não tem limite: não sabemos onde ele começa e onde termina. Talvez por isso geralmente a informação obtida proporciona, em algum momento, a sensação de segurança e, a sua ausência, mal estar. Não há como negar, precisamos muito de informações, desde aquelas que atendam as necessidades mais imediatas (diagnóstico de doença, definição da melhor opção na compra de uma casa ou automóvel, seleção de pessoas qualificadas para o serviço, desenvolvimento de práticas econômicas sustentáveis), até as necessidades mais abstratas (escolha de valores morais, existenciais e transcendentais).
        De acordo com as características individuais e da sensibilidade de cada um, procuramos conhecer os fenômenos que ocorrem próximos ou distantes de nós. No cotidiano, diante de eventos pessoais (tristeza persistente, doenças, acidentes, prejuízo financeiro), sociais (guerras, crise financeira, governos ditatoriais), naturais (aquecimento global, extinção de espécies) e cósmicos (expansão do universo, matéria escura, buracos negros e de minhoca), procuramos os jornais, revistas, livros, amigos, especialistas e líderes espirituais para amenizar o desagradável desconhecimento. Quando não conseguimos, frequentemente ficamos ansiosos ou angustiados (pessoalmente, é muito raro não questionar o porquê, ao amanhecer acentuadamente mais animado ou irritado, quando presencio o sepultamento de um ente querido ou amigo, ao assistir ao noticiário da morte de mais de duzentas mil pessoas na Indonésia - tsunami -, quando informado da queda de uma enorme árvore que matou um jovem motorista num dia chuvoso, ao ler nos jornais os frequentes escândalos políticos de corrupção...). Somos tão necessitados de informação que algumas vezes adquirimos conteúdos até por imitação. Somos tão sedentos de dados que, mesmo sendo agricultores, cientistas ou religiosos, utilizamos para as nossas decisões, conscientemente ou não, em maior ou menor intensidade, todas as formas de conhecimento: empírico, filosófico, teológico e científico. Porque é mais confortável ter uma certeza duvidosa do que uma dúvida certa.
        Porém, em muitas situações, que envolvem relação entre pessoas - marido e mulher, pais e filhos, professor e aluno, padre e fiel, profissional e paciente -, ser informado, ou seja, tomar conhecimento de algo não é suficiente para sentir-se confortado e compreender a realidade. Mais do que informar, é fundamental explicar: personalizar a informação, adaptá-la às características do outro, ter o compromisso de se fazer entender e de clarificar. A informação é impessoal, a explicação não. E justamente nos períodos de angústia - como daquela mãe do paciente - que precisamos mais de explicações do que informações. É o que eu vou tentar fazer com ela, mesmo sabendo que, para muitas indagações, não existirão explicações...
     
     

domingo, 10 de junho de 2012

Ilusões

      Ontem pela manhã estava na loja de um amigo de sela, conversando sobre algumas dificuldades que envolviam o tratador dos nossos cavalos quando, inesperadamente, ele me convidou para conhecer um produto diferente. Por ser proprietário de uma padaria, fiquei imaginando que seria um novo tipo de pão ou  bolacha que acabara de lançar mas, quando me apresentou uma terceira pessoa, pedindo para que fosse me mostrar a novidade, pensei: acho que já vi este filme antes. Com a chegada de um outro amigo nosso, fomos para o escritório, onde os divulgadores realizaram os preparativos, ligaram o computador e começaram a demonstração: tratava-se da divulgação de uma bebida que, segundo a extensa exposição, tinha na composição apenas ingredientes naturais, em várias versões - para o emagrecimento ou como suplemento energético. Destacaram que, além de consumir  um alimento saudável, o cliente teria ainda a grande oportunidade de ganhar dinheiro, sendo um distribuidor do produto. Sentado na cadeira, observei que a estratégia de marketing iniciou com uma refinada apresentação visual do apresentador, além de um discurso emocionante e cuidadoso com as palavras, "fundamentado" com informações de revistas semanais e noticiários, ilustrado com gráficos coloridos, fotos de celebridades e frases aspeadas. Mas, sem dúvida, o grande finale ficou por conta das imagens que mostraram o ganho financeiro progressivo, premiações com viagens e presentes, novas amizades e a possibilidade de se tornar um milionário, ser uma pessoa de sucesso e feliz - the end. É, realmente eu já tinha visto este filme antes, com produtos e personagens diferentes, mas com a mesma expectativa e euforia iniciais. Durante a reunião, quando perguntei sobre a existência de pesquisas científicas que indicassem o benefício do produto, a resposta que tive foi que não havia evidências, mas que os efeitos na saúde seriam sentidos durante o seu uso. Destoante da versão hollywoodiana assistida, o enredo se mostrou bem diferente para os meus conhecidos que seguiram esta trilha no passado, não conseguindo realizar o grande sonho americano. Por isto, saí da sessão preocupado com o meu amigo, um jovem trabalhador, responsável e correto nas suas atitudes, que desempenha uma atividade profissional desgastante - comércio -, mas que está deslumbrado com um novo script de vida, que promete maior remuneração e menor carga horária de trabalho. O seu entusiasmo me intimidou, inicialmente, a convidá-lo a fazer uma pesquisa rápida na web sobre vendas em pirâmides e empresas de marketing multinível - MMN - (Quem ganha? Por quanto tempo? A que custo?), com o objetivo de fazer uma crítica mais lúcida do empreendimento. Mas, escrevendo estas linhas, resolvi correr o risco e trocarmos uns emails sobre o assunto, tentando distinguir ficção e realidade da propaganda, mas também da minha observação.
      Apesar de acreditarmos que em muitas situações diárias utilizamos uma percepção mais racional (ou menos emotiva?) e, por isso, mais aproximada da realidade (fazendo uso de dados objetivos, analisando a relação custo/benefício, considerando as probabilidades e as experiências anteriores), em outros momentos certamente nossos medos e desejos nos fazem "esquecer" as evidências contrárias, dando-nos a certeza  da decisão - seja na descoberta de um negócio fabuloso, no relacionamento com uma pessoa extraordinária, na compra de algo incrível ou na aquisição de um conhecimento esclarecedor. São distorções que aumentam ou diminuem certos aspectos da percepção, de acordo com as motivações pessoais mais relevantes. São as inevitáveis, agradáveis ou dolorosas ilusões. E, geralmente, onde há ilusão, há convicção: nos mais otimistas, que tendem a negligenciar os obstáculos, interpretando até como comédia os acontecimentos desagradáveis, e nos pessimistas de plantão, que desqualificam as vitórias, repetindo e destacando as cenas dramáticas das experiências. Quanto mais tristes - ou mais alegres - nos sentirmos, provavelmente mais iludidos e distantes da realidade estaremos. Mas, quem disse que precisamos estar sempre tão perto dela? Assim como assistimos aos filmes e nos emocionamos - sorrindo ou chorando -, mesmo sabendo do seu caráter fantasioso e que terá fim em duas horas, também poderíamos viver os acontecimentos cotidianos - deleitando ou sofrendo - da mesma maneira, lembrando que podem estar exagerados e que serão transitórios.
      Mas o que fazer em relação ao uso comercial e abusivo das ilusões, seja com produtos inócuos, serviços ineficazes e informações inadequadas, recrutando uma maioria para o benefício e satisfação de poucos? Se eu não estiver enganado, com reflexão, inicialmente. 

domingo, 27 de maio de 2012

Tic tac

      As mudanças físicas - cabelos brancos, dificuldade visual para leitura, marcas de expressão no rosto - estão se tornando cada vez mais visíveis aos 42 anos de idade, avisando-me que a juventude passou. Mesmo agradecido pela ausência de hipertensão, diabetes e outros problemas de saúde que podem  surgir nesta idade, começo a visualizar o rastro do tempo. Curioso é que, internamente, parece que as modificações são menos evidentes, embora venha usufruindo de um maior aproveitamento das situações, evitando os pensamentos desnecessários - situação mais difícil com menos idade. Nos meus vinte e poucos anos ouvia - e não entendia - minha mãe dizer que era estranho ver o corpo sofrendo mudanças, mas a mente permanecendo sem maiores alterações.  Nos últimos quinze anos, fazendo avaliações cognitivas em pessoas com mais de 50 anos, continuo a escutar a mesma coisa: o esquisito, desafiador ou desagradável descompasso entre o envelhecimento físico e o psicológico - ao que parece, os desejos e os medos são mais resistentes que os músculos e órgãos à passagem dos dias.
       Esta semana uma senhora levou para a consulta algumas fotos suas e fez questão de me mostrar, na sequência dos acontecimentos: aos 15 anos, com a farda do colégio; na plenitude da sua morenice, aos 20; com 37, rodeada dos filhos; e aos 50,  numa reunião com colegas de trabalho. Em seguida, olhei para a frente e, numa outra fotografia, a vi com 71 anos, com um derrame facial e com a fisionomia naturalmente bastante diferente dos momentos anteriores. Por alguns instantes parei... e vi o tempo diante de mim!
      Até o final da adolescência as intensas mudanças no desenvolvimento corporal, com o esplendor da força e da destreza, seguem um ritmo semelhante ao das alterações comportamentais, com acentuada ousadia e prontidão mental. Ou seja, para um corpo diferente, uma nova mente. Contudo, esta simultaneidade parece não continuar após a juventude e os ritmos entre corpo e mente tendem a se diferenciar nos cinquentões. Apesar dos grandes avanços da medicina - adiando a deterioração do organismo -, e do surgimento de uma nova compreensão e atitude na terceira idade - levando pessoas a continuarem a realizar projetos pessoais e profissionais para além das seis décadas de vida -,  cedo ou tarde teremos que considerar a realidade: envelhecemos. É o inexorável fluxo dos acontecimentos que vivenciamos todos os dias, da infância  à vida adulta, do despertar para ir à escola ou o trabalho, ao anoitecer e retornar para a segurança do lar. Envelhecer é um fenômeno contínuo, que tem um início exuberante, com muitas e intensas aquisições - físicas e mentais -, mas que são gradualmente (ou não) subtraídas (embora algumas habilidades possam permanecer por toda a vida).  A perda se apresenta como uma companhia frequente à medida que o envelhecimento se torna acelerado, comprometendo o funcionamento de determinados órgãos e sistemas, a mobilidade, a autonomia, o poder de decidir ou de interagir (sem falar das outras perdas, envolvendo familiares, amigos e remuneração).
       Embora transpareça algo amedrontador, não percebo - até o momento - o terço final da vida como uma fase trágica, e não tenho a menor intenção de desestimular os que entraram (ou entrarão) para o grupo dos "enta" - cinquenta, sessenta, setenta. Ao contrário, estou convencido da beleza e da utilidade da velhice no aprimoramento de uma pessoa e de uma comunidade, mas sem deixar de reconhecer os vários e relevantes incômodos do período. Não se pode, no curso natural, interromper ou evitar o envelhecimento, mesmo com os diagnósticos precoces, medicamentos eficientes, cirurgias transformadoras, exercícios físicos regulares, alimentação adequada. Por isto, estando aproximadamente na metade do caminho e tendo a possibilidade (privilégio) de participar  das experiências dos pacientes, não posso desperdiçar a oportunidade: vou tentar tirar proveito das suas dores e prazeres, para me orientar no trecho final do meu percurso, mas sem pressa.

domingo, 13 de maio de 2012

Queimando a memória

      "Parece feito nas coxas " (expressão utilizada para designar um produto ou serviço malfeito - teria origem na época da escravidão, quando as telhas deixaram de ser moldadas nas pernas dos escravos); "fala mais que o homem da cobra" (frase indicativa de uma pessoa que verbaliza exageradamente - teria surgido das feiras do interior, há muitos anos, quando se vendiam cobras para exterminar ratos e insetos, cujos vendedores falavam exaustivamente as qualidades dos seus animais). Informações obtidas com meus pacientes idosos, junto com outras experiências mais marcantes - presença no front da segunda guerra mundial, imigração de alguns africanos e europeus para o Brasil. São experiências que, embora não tenham sido solicitadas, foram espontaneamente relatadas durante as avaliações neuropsicológicas e cuidadosamente aproveitadas como aprendizado, seja pela imaginação ou reflexão. De uma forma ou de outra, este grupo de pacientes geralmente me presenteia.
      Esta semana atendi uma  "boleira" de setenta e dois anos de idade, que produz e comercializa doces e salgados há mais de cinquenta anos, e que teve a gentileza de tornar a minha semana mais saborosa, oferecendo-me uns docinhos. A vida dela, entretanto, não está nada palatável, uma vez que anda muito esquecida. Angustiada, reclamou que tem deixado queimar as encomendas - o bolo no forno e outras comidas nas panelas -, causando-lhe prejuízo e muita preocupação. Acrescentou ainda que, de vez em quando, esquece também de colocar algum ingrediente na receita ou fica insegura na sequência do preparo. Sem entender, questionou como era possível esquecer situações cotidianas e lembrar de antigas clientes e de grandes festas que promoveu há vinte ou trinta anos. É realmente uma dúvida que inquieta muitas pessoas: por que é mais fácil recordar fatos antigos que os recentes?
      Inicialmente, para fazer uma boa memória precisa-se de vários ingredientes, como a motivação, atenção e emoção (descritos na postagem do dia 21 de agosto de 2011 - Memória à moda da casa) - componentes nem sempre tão disponíveis nas pessoas com mais de setenta anos. Em seguida, é necessário levar a massa ao forno (regiões temporais mesiais do cérebro, que desempenham um papel fundamental na consolidação de novas memórias) e deixar assar por várias noites (as informações são melhor armazenadas durante o sono). Finalmente o bolo é retirado do forno e posto a mesa para ser degustado (as lembranças são transferidas definitivamente das regiões temporais para o córtex cerebral e evocadas sempre que necessárias).
      Armazenar informações com vinte ou trinta anos é tão fácil e simples como utilizar um fogão novinho: funciona que é uma beleza! Com a idade chegando, pode ir enferrujando a estrutura, desgastando as peças e alterando a uniformidade do calor no seu interior, solando o bolo. As memórias remotas não precisam mais passar pelo forno: já foram assadas e estão prontas, sendo então mais facilmente lembradas. Já os acontecimentos recentes terão que percorrer todo aquele preparo e encontrar o eletrodoméstico em plenas condições. Falando nisso, a situação da minha simpática "boleira" é mais complicada e infelizmente não posso retribuir sua gentileza como gostaria, presenteando-a merecidamente com um novo fogão, quero dizer, uma nova memória.