domingo, 27 de maio de 2012

Tic tac

      As mudanças físicas - cabelos brancos, dificuldade visual para leitura, marcas de expressão no rosto - estão se tornando cada vez mais visíveis aos 42 anos de idade, avisando-me que a juventude passou. Mesmo agradecido pela ausência de hipertensão, diabetes e outros problemas de saúde que podem  surgir nesta idade, começo a visualizar o rastro do tempo. Curioso é que, internamente, parece que as modificações são menos evidentes, embora venha usufruindo de um maior aproveitamento das situações, evitando os pensamentos desnecessários - situação mais difícil com menos idade. Nos meus vinte e poucos anos ouvia - e não entendia - minha mãe dizer que era estranho ver o corpo sofrendo mudanças, mas a mente permanecendo sem maiores alterações.  Nos últimos quinze anos, fazendo avaliações cognitivas em pessoas com mais de 50 anos, continuo a escutar a mesma coisa: o esquisito, desafiador ou desagradável descompasso entre o envelhecimento físico e o psicológico - ao que parece, os desejos e os medos são mais resistentes que os músculos e órgãos à passagem dos dias.
       Esta semana uma senhora levou para a consulta algumas fotos suas e fez questão de me mostrar, na sequência dos acontecimentos: aos 15 anos, com a farda do colégio; na plenitude da sua morenice, aos 20; com 37, rodeada dos filhos; e aos 50,  numa reunião com colegas de trabalho. Em seguida, olhei para a frente e, numa outra fotografia, a vi com 71 anos, com um derrame facial e com a fisionomia naturalmente bastante diferente dos momentos anteriores. Por alguns instantes parei... e vi o tempo diante de mim!
      Até o final da adolescência as intensas mudanças no desenvolvimento corporal, com o esplendor da força e da destreza, seguem um ritmo semelhante ao das alterações comportamentais, com acentuada ousadia e prontidão mental. Ou seja, para um corpo diferente, uma nova mente. Contudo, esta simultaneidade parece não continuar após a juventude e os ritmos entre corpo e mente tendem a se diferenciar nos cinquentões. Apesar dos grandes avanços da medicina - adiando a deterioração do organismo -, e do surgimento de uma nova compreensão e atitude na terceira idade - levando pessoas a continuarem a realizar projetos pessoais e profissionais para além das seis décadas de vida -,  cedo ou tarde teremos que considerar a realidade: envelhecemos. É o inexorável fluxo dos acontecimentos que vivenciamos todos os dias, da infância  à vida adulta, do despertar para ir à escola ou o trabalho, ao anoitecer e retornar para a segurança do lar. Envelhecer é um fenômeno contínuo, que tem um início exuberante, com muitas e intensas aquisições - físicas e mentais -, mas que são gradualmente (ou não) subtraídas (embora algumas habilidades possam permanecer por toda a vida).  A perda se apresenta como uma companhia frequente à medida que o envelhecimento se torna acelerado, comprometendo o funcionamento de determinados órgãos e sistemas, a mobilidade, a autonomia, o poder de decidir ou de interagir (sem falar das outras perdas, envolvendo familiares, amigos e remuneração).
       Embora transpareça algo amedrontador, não percebo - até o momento - o terço final da vida como uma fase trágica, e não tenho a menor intenção de desestimular os que entraram (ou entrarão) para o grupo dos "enta" - cinquenta, sessenta, setenta. Ao contrário, estou convencido da beleza e da utilidade da velhice no aprimoramento de uma pessoa e de uma comunidade, mas sem deixar de reconhecer os vários e relevantes incômodos do período. Não se pode, no curso natural, interromper ou evitar o envelhecimento, mesmo com os diagnósticos precoces, medicamentos eficientes, cirurgias transformadoras, exercícios físicos regulares, alimentação adequada. Por isto, estando aproximadamente na metade do caminho e tendo a possibilidade (privilégio) de participar  das experiências dos pacientes, não posso desperdiçar a oportunidade: vou tentar tirar proveito das suas dores e prazeres, para me orientar no trecho final do meu percurso, mas sem pressa.

domingo, 13 de maio de 2012

Queimando a memória

      "Parece feito nas coxas " (expressão utilizada para designar um produto ou serviço malfeito - teria origem na época da escravidão, quando as telhas deixaram de ser moldadas nas pernas dos escravos); "fala mais que o homem da cobra" (frase indicativa de uma pessoa que verbaliza exageradamente - teria surgido das feiras do interior, há muitos anos, quando se vendiam cobras para exterminar ratos e insetos, cujos vendedores falavam exaustivamente as qualidades dos seus animais). Informações obtidas com meus pacientes idosos, junto com outras experiências mais marcantes - presença no front da segunda guerra mundial, imigração de alguns africanos e europeus para o Brasil. São experiências que, embora não tenham sido solicitadas, foram espontaneamente relatadas durante as avaliações neuropsicológicas e cuidadosamente aproveitadas como aprendizado, seja pela imaginação ou reflexão. De uma forma ou de outra, este grupo de pacientes geralmente me presenteia.
      Esta semana atendi uma  "boleira" de setenta e dois anos de idade, que produz e comercializa doces e salgados há mais de cinquenta anos, e que teve a gentileza de tornar a minha semana mais saborosa, oferecendo-me uns docinhos. A vida dela, entretanto, não está nada palatável, uma vez que anda muito esquecida. Angustiada, reclamou que tem deixado queimar as encomendas - o bolo no forno e outras comidas nas panelas -, causando-lhe prejuízo e muita preocupação. Acrescentou ainda que, de vez em quando, esquece também de colocar algum ingrediente na receita ou fica insegura na sequência do preparo. Sem entender, questionou como era possível esquecer situações cotidianas e lembrar de antigas clientes e de grandes festas que promoveu há vinte ou trinta anos. É realmente uma dúvida que inquieta muitas pessoas: por que é mais fácil recordar fatos antigos que os recentes?
      Inicialmente, para fazer uma boa memória precisa-se de vários ingredientes, como a motivação, atenção e emoção (descritos na postagem do dia 21 de agosto de 2011 - Memória à moda da casa) - componentes nem sempre tão disponíveis nas pessoas com mais de setenta anos. Em seguida, é necessário levar a massa ao forno (regiões temporais mesiais do cérebro, que desempenham um papel fundamental na consolidação de novas memórias) e deixar assar por várias noites (as informações são melhor armazenadas durante o sono). Finalmente o bolo é retirado do forno e posto a mesa para ser degustado (as lembranças são transferidas definitivamente das regiões temporais para o córtex cerebral e evocadas sempre que necessárias).
      Armazenar informações com vinte ou trinta anos é tão fácil e simples como utilizar um fogão novinho: funciona que é uma beleza! Com a idade chegando, pode ir enferrujando a estrutura, desgastando as peças e alterando a uniformidade do calor no seu interior, solando o bolo. As memórias remotas não precisam mais passar pelo forno: já foram assadas e estão prontas, sendo então mais facilmente lembradas. Já os acontecimentos recentes terão que percorrer todo aquele preparo e encontrar o eletrodoméstico em plenas condições. Falando nisso, a situação da minha simpática "boleira" é mais complicada e infelizmente não posso retribuir sua gentileza como gostaria, presenteando-a merecidamente com um novo fogão, quero dizer, uma nova memória.

domingo, 6 de maio de 2012

Animais

      O desenvolvimento urbano de uma região geralmente resulta num desequilíbrio ambiental, comprometendo as espécies animais e vegetais, porém com a permanência de alguns exemplares mais adaptáveis. Lá na Barra Nova a destruição da capoeira pela expansão imobiliária vem destruindo o habitat de mamíferos, aves e répteis, além da vegetação nativa. Porém, alguns pássaros e mamíferos continuam no território, resistindo bravamente à invasão humana. Um deles é um inquilino ágil e travesso, que se move pela fiação elétrica e antenas de tv das casas, pula muros e telhados, procurando os pés de caju, manga e goiaba das residências: o sagui. Hoje, quando voltei ao povoado, na expectativa de encontrar frutas bem madurinhas em casa, mais uma vez cheguei tarde: os pequenos macacos já tinham feito a festa e só encontrei o resto no chão. Enquanto apanhava as sobras da farra da macacada, escutei os guinchos e assobios emitidos de longe; em seguida, mais próximos, presenciei uma briga barulhenta entre dois machos, provavelmente por ascensão social ou competindo por uma fêmea (dizem que o sagui demonstra sua superioridade na hierarquia mostrando seu traseiro ao outro). Entre residências e automóveis, o primata sobrevive e mantém seus antigos hábitos. É o convívio do primitivo com o novo, do rudimentar com o civilizado.
         Um pouco frustrado por não fazer a colheita desejada, não demorei muito e fui almoçar com  familiares. No final da tarde, regressando para Maceió, encontrei os rotineiros malabaristas no semáforo, tentando descolar um trocado. Um pouco mais a frente, numa marquise de uma grande loja, um amontoado de adolescentes me chamou a atenção: maltrapilhos e com uma aparência pré-histórica, eles se envolviam numa briga feroz. Uma mão segurando um garrafa de plástico com cola de sapateiro e a outra com uma grande pedra, dois garotos se ameaçavam intensamente. A agressividade estampada nos olhos e corpos imundos, o jeito como se movimentavam e a excitação do grupo para ver quem seria o mais forte foi algo chocante! Uma bizarra situação que parecia mais uma cena de documentário do History sobre  civilizações primitivas. Só que estava acontecendo no século vinte e um e eu estava presenciando. Estava testemunhando pessoas - como eu e meus filhos - vivendo e se comportando como animais selvagens; usando substâncias psicoativas, que causam danos até irreversíveis nos circuitos cerebrais responsáveis pela aprendizagem e pelo controle dos impulsos; eu estava assistindo à ausência total do Estado e o resultado de décadas de irresponsabilidade e desumanidade dos nossos representantes e gestores públicos (referendados pela nossa conveniente conivência), numa disputa eterna para ser o macho alfa.
        Gostaria muito de poder continuar presenciando cenas de comportamento selvagem apenas nos saguis e não em pessoas, que as disputas ficassem nos estádios e quadras esportivas, que a urbanidade predominasse no ambiente urbano, e que pudéssemos ser mais eficientes em identificar nuances de condutas animalescas, extinguindo-as civilizada e democraticamente.

domingo, 29 de abril de 2012

Tecnologias

      Após muito tempo de vida, já realizando suas atividades com lentidão, bastante defasado em relação aos mais jovens e visivelmente danificado - sendo até motivo de chacota entre os familiares -, chega finalmente o fim... do meu celular! Extremamente alheio às novidades tecnológicas destes aparelhos, preferindo sempre o que fosse eficiente - em simplesmente ouvir e falar -, e que não precisasse realizar cálculo matemático para entender o menu, passei esta semana chateado. Precisando escolher outro celular, convidei uma pessoa altamente especializada em tecnologia - minha esposa - para me socorrer nesta empreitada, e me deparei com uma infinidade de opções nas vitrines, com explicações das atendentes que mais pareciam aulas de Física I e que me fizeram sentir como um membro das tribos isoladas da Amazônia. Após um bombardeio de informações técnicas das autoridades femininas, comprei (ou  fizeram-me comprar?) um tal de Android que, pelo muito que ouvir e pouco que entendi o robô só faltava falar, ou melhor, falar é o que de mais simples ele sabia fazer.
      Depois, lendo o manual para diminuir a minha ignorância, descobri que Android é o sistema operacional do equipamento, que realiza rapidamente uma infinidade de funções com os vários ships que possui - tira foto e filma com recursos bem variados, faz contatos através de mensagens, emails, viber, tem gps, navegador, músicas, calculadora, calendário, documentos do Office, gravador de voz, rádio, wi-fi, ponto de acesso portátil, bluetooth... Tem até  bloqueio de palavras ofensivas e emoticons, segundo o manual é "para dar vida às mensagens". Pensei até em usá-lo para assar pão, já que também utiliza microondas, igual ao forno (perto deste, o menu do meu falecido parece mais o de um restaurante de beira de estrada).
      Acostumado com o comportamento primitivo de apertar as teclas para me comunicar, deslizar o dedo sobre a tela do celular foi uma tarefa divertida e engraçada - para a plateia familiar a que me assistia. Novamente precisei da ajuda de um outro professor, meu filho de 15 anos, que, com muito carinho e bom humor, foi pacientemente me explicando a utilidade dos intermináveis aplicativos (com as atividades e responsabilidades cotidianas de um pai de 3 filhos, para utilizar rotineiramente todas as possibilidades do equipamento, precisaria que o meu dia fosse igual ao de vênus - equivalente a 243 dias terrestres). Sexta-feira, após o costumeiro passeio com os  cavalos, contemplando sua força e beleza na pista empoeirada da Barra Nova, retorno com o meu primogênito ainda ouvindo seus ensinamentos cibernéticos. Com um pouco mais de informação sobre o mundo virtual e, consequentemente, menos espantado - até utilizando alguns recursos -, repentinamente no trajeto para casa me lembrei do meu pai - na minha adolescência - preocupado com o futuro dos filhos no envolvimento com as novidades da modernidade. Menos catastrófico que ele, também achei necessário refletir com o Victor sobre um dos maiores desafios comportamentais da humanidade que vislumbro para as próximas décadas:  selecionar.
      Numa sociedade que busca cada vez mais situações ou relações intensas, rápidas e cômodas,  escolher não será uma tarefa fácil. A rapidez e a variedade de opções (brinquedos, máquinas, cursos, profissões, igrejas, encontros e experiências), bem como a facilidade de obtenção, incorporadas nos relacionamentos afetivos, educação dos filhos, decisão profissional, lazer e religião tornarão as pessoas cada vez mais ansiosas quando tiverem que preferir (arrisco-me a dizer que o avanço econômico, a competitividade e a sofisticação da vida, entre outras coisas, contribuirão bastante para esta possível realidade).
      Como realizar uma escolha apressadamente, se seu processamento necessita de circuitos cerebrais amplos e distintos, com ingredientes cognitivos e emocionais, fermentados sob a ação branda do tempo e da solidão?  Como selecionar o primeiro, sem a incômoda sensação de renunciar o segundo, terceiro, quarto, quinto (não seria mais confortável tê-los também)? Como optar por algo ou alguém, tendo que enfrentar as consequentes implicações? E, finalmente, como aguardar o amadurecimento dos frutos da escolha, com tanta pressa?
      É claro que não esgotei meu filho com todos estes questionamentos (afinal de contas ele - como eu - precisamos nos deslumbrar com algumas coisas); procurei apenas estimulá-lo na reflexão de certos aspectos envolvidos na relação com amigos, paqueras, escolha profissional mas, sobretudo, procurei destacar determinadas instruções que acredito serem aplicativas no inevitável, complexo e cotidiano jogo: viver. 

domingo, 22 de abril de 2012

Diferenças que fazem a diferença

       No início de uma avaliação neuropsicológica com crianças menores de seis anos, após entrevista inicial com os pais, geralmente vou à escola - com a autorização deles e da instituição - para observar o estudante no contexto escolar: converso com a equipe técnica e acompanho algumas atividades na sala e/ou no recreio, sem que o mesmo saiba quem sou (para que minha presença tenha menor impacto no seu comportamento espontâneo). Com este objetivo fui, nesta última sexta-feira, avaliar dois estudantes numa mesma escola. Após o contato inicial com a coordenadora, que me forneceu algumas informações preliminares, foi chamada a professora para detalhar as dificuldades identificadas no garoto. Em seguida fui para a sala de aula observá-lo na relação com a professora, com os colegas e com a aprendizagem. Diferentemente das situações anteriores - com outros pacientes -, onde geralmente presencio a inquietação, irritabilidade, agressividade, coordenação motora incipiente ou dificuldade de seguir normas e regras, neste dia houve uma peculiaridade: a grande semelhança comportamental dos menores, apresentada pela equipe pedagógica e demonstrada por eles durante a visita. Como num déjà vu, nos dois procedimentos as professoras relataram basicamente as mesmas queixas, percebidas in loco: intensa dificuldade de relacionamento, isolamento social, movimentação constante e aparentemente despropositada na sala de aula, linguagem e comunicação restritas, incômodo acentuado diante do barulho, indiferença pelas atividades escolares, evitação do contato visual e um grande interesse em permanecer diante do espelho, realizando alguns movimentos estereotipados com as mãos. Apesar das outras características individuais distintas - um costuma jogar-se embaixo da carteira quando inseguro e o outro manifesta um importante espelhamento quando presencia um colega chorando -, a repetição das mesmas dificuldades foi o diferente no último dia útil desta semana, no contato com dois pacientes com perfil sugestivo do espectro autista. Nas escolas por onde tenho andado, diferente é também como são definidas estas e outras pessoas que apresentam  Transtorno Invasivo do Desenvolvimento; pouco habilidosas na compreensão dos jogos sociais e na reciprocidade, aparentando descaso com o outro. E para complicar a situação delas, as restrições que apresentam não se resumem à socialização, mas comprometem ainda a comunicabilidade e o repertório de interesses. Independente da possibilidade da preservação, em determinados pacientes, de várias funções cognitivas - inteligência, memória declarativa, funções visuoespaciais -, até com desempenho diferenciado em alguma delas, a tríade limitação (linguagem, socialização e comportamentos) causa realmente um transtorno na vida da criança e da família; resultam numa intensa desvantagem em relação aos demais alunos da turma. Entre outros, com estimulação fonoaudiológica, psicopedagógica e afetiva é possível atenuar os sintomas. No momento, entretanto, o que preciso tentar diminuir é a dificuldade das famílias daqueles garotos - percebida no primeira entrevista - em aceitar a hipótese diagnóstica do espectro autista. Isto sim fará toda a diferença!

domingo, 15 de abril de 2012

Rumo ao infinito

     Nas noites escuras, costumava deitar em cima do muro e observar o céu todo estrelado: contava os astros, procurava uma estrela cadente ou até um disco voador e me encantava com a imensidão piscante do firmamento; aos dez anos de idade falava que, quando crescesse, seria astronauta. Adiando sempre a procura por um curso de astronomia amador, esta semana tive uma surpresa quando, numa reportagem da tv, fui informado que havia um observatório astronômico na cidade e que estaria aberto ao público para observações de saturno. Com os meus dois filhos fui conhecer o observatório - que se localiza no centro educacional que estudei quando garoto - e ver o segundo maior planeta do sistema solar, que durante estes dias está mais perto da terra - apenas alguns milhões de quilômetros. Embora já tenha visto na televisão e na internet fotografias e vídeos de alguns planetas, cometas e nebulosas, obtidos por sondas espaciais ultra sofisticadas, quando, nesta última sexta-feira, localizei saturno no céu e o vi no telescópio - mesmo que pequeno e com poucos detalhes -, fiquei maravilhado em ter um contato tão direto  com o astro. Conseguir identificar seus anéis e imaginá-los repletos de rochas, gás e gelo, girando continuadamente, foi algo extraordinário! Com o mesmo entusiasmo observei ainda o nosso vizinho marte, com sua inconfundível cor avermelhada. Alguns professores enriqueceram a visita, com informações sobre as constelações, formação dos planetas, etc. Como em outros momentos em que assisti aos documentários e reportagens sobre big bang, buracos negros, buracos de minhoca, nascimento de estrelas, expansão do universo e matéria escura, mais uma vez fiquei impressionado com a complexidade do universo. Curiosamente, quando aventuro alguma leitura no universo microscópico do ser humano, sobre os cromossomos, gene, moléculas, partículas subatômicas, presentes nas trilhões de céluas do corpo, realizando uma quantidade assustadora de fenômenos fisiológicos, também fico espantado com os números astronômicos em algo tão pequeno. Parece que quanto mais  a ciência se aprofunda no conhecimento - seja da célula ou do cosmos -, mais vislumbra o infinito. Como um astronauta, continuarei a viajar nas duas direções (ou será apenas uma?) mas, no momento, quero parar um pouco nos anéis de saturno.

domingo, 1 de abril de 2012

A sabedoria das dificuldades

      Esta semana atendi uma criança de 10 anos de idade, com queixa  - segundo os pais - de intensa dificuldade na aprendizagem, principalmente na leitura. Sua mãe demonstrava intensa angústia pelo comprometimento da filha na escola, manifestando ainda grande expectativa pela avaliação que se iniciava, ansiosa por um tratamento que tornasse a garota uma boa estudante. A paciente, manifestando entusiasmo e adequada habilidade social, parecia não se incomodar tanto com o seu desempenho acadêmico. Infelizmente, através dos instrumentos utilizados, a dificuldade que era percebida pelos pais como algo isolado na linguagem, foi se revelando como um transtorno cognitivo amplo, envolvendo várias funções mentais. Na entrevista devolutiva, informar aos familiares a deficiência intelectual da menina e as restrições atuais (atividades escolares) e futuras (atividades profissionais) não foi uma notícia que gostaria de dar.
      Dois dias depois uma jovem de vinte e poucos anos, graduada numa universidade de referência nacional, diferenciada cognitivamente e independente financeiramente, demonstrou uma preocupante fragilidade emocional, com uma incipiente habilidade em lidar com a frustração. Apesar de bonita, fluente e inteligente, sua outra inteligência  - emocional - lamentavelmente contrastava e comprometia significativamente a qualidade dos seus dias, geralmente com desânimo e tristeza. Conscientizá-la da importância do acompanhamento psiquiátrico e psicológico e das restrições atuais (faltas no trabalho, socialização empobrecida, reduzida satisfação nas atividades) e futuras (agravamento dos sintomas e dos prejuízos) também não foi uma tarefa fácil. 
      Pessoas bem diferentes, com habilidades e dificuldades opostas, mas com significativas e dolorosas semelhanças - tanto para elas, quanto para os familiares; para os demais o que se espera é, pelo menos, solidariedade e, se for inteligente, alguma reflexão...


domingo, 25 de março de 2012

Dor de cabeça

        Durante a minha infância e adolescência presenciei a preocupação dos meus pais – e outros adultos – quando alguém levava uma pancada na cabeça: rapidamente colocavam gelo para o galo não crescer. Quando vinha acompanhada de sonolência e vômito o temor aumentava bastante, sendo o garoto geralmente conduzido ao serviço de urgência. Embora estes sinais venham sendo minimizados pelos neurologistas – não indicando necessariamente um agravamento do acidente – a cabeça continua a ocupar o primeiro lugar no ranking de cuidados com ferimentos, tanto pelos médicos, quanto pelas famílias. E não é à toa, pois abriga a maior concentração de células muito complexas, especializadas em conduzir e transmitir impulsos: os neurônios.
       No adulto são aproximadamente 100 bilhões de unidades que, desde a gestação, passam por várias fases, iniciando com a proliferação controlada, continuando com a migração para regiões específicas do cérebro, ocorrendo em seguida a diferenciação celular, formando os circuitos neurais, eliminando as células e circuitos redundantes (“poda”) e mielinizando o axônio (terminação transmissora do neurônio, envolvida pela bainha de mielina, que é a responsável pela rápida condução do impulso nervoso). São etapas iniciadas no útero e continuadas após o nascimento. Com uma adequada alimentação e estimulação (afetiva e cognitiva), a mielinização se espalha no cérebro mais intensamente nas duas primeiras décadas de vida, de trás para frente (das regiões posteriores do cérebro, essencialmente perceptivas, para as anteriores, executivas). O desenvolvimento pleno resulta no andar, falar, ler, aprender e muitos outros comportamentos que tanto encantam e emocionam os pais ao longo do crescimento do filho. Mas, por outro lado, se nos circuitos relacionados com a cognição houver alterações nas etapas (forma e função), haverá também limitações na linguagem, atenção, interação com pessoas ou no controle dos impulsos, ocasionando desvantagens na socialização e na aprendizagem.
       Nas crianças, as modificações relevantes no código genético se destacam na origem dos transtornos de aprendizagem, enquanto nos adultos o uso de drogas, infecções, AVE (acidente vascular encefálico), síndromes demenciais e TCE (traumatismo cranioencefálico) respondem pelas limitações cognitivas (esquecimento, desatenção) e comportamentais (agitação, agressividade), ao ponto de comprometerem gravemente o desempenho social e profissional. Apesar da existência de sistemas de proteção do sistema nervoso – crânio, líquor e as meninges – o tecido nervoso torna-se vulnerável diante de estímulos mecânicos intensos e/ou repetidos, devido ao impacto da massa encefálica contra as paredes do crânio. Já fiz avaliação neuropsicológica em vários pacientes que desenvolveram mudanças profundas da personalidade, prejuízos significativos da memória de trabalho e das funções executivas após quedas, acidentes com veículo, moto e até bicicleta. A reabilitação cognitiva nestes casos é um processo longo, penoso e com resultados nem sempre animadores.
       Infelizmente parece que este grupo de pacientes vai aumentar, com a globalização do MMA, pretensa prática esportiva, cuja "vitória" resulta sempre no intenso sofrimento físico do adversário (não seria mais adequado chamá-lo de vítima?), tem como um dos principais alvos a cabeça e como lance mais desejado (gol de placa)  o nocaute - concussão cerebral.  Como é possível, diante da complexidade, importância e vulnerabilidade do funcionamento cerebral, considerar o MMA um esporte (atividade que surgiu inicialmente com fins militares, mas que progrediu como uma fantástica maneira de sublimar tendências humanas primitivas)? Assim como nas propagandas dos cigarros, a divulgação desta luta deveria informar aos gladiadores a possibilidade de desenvolverem a Demência do Pugilista - processo neurodegenerativo que cursa com declínio cognitivo acentuado e outras alterações motoras.  
       Para uma sociedade tão agredida pela violência urbana como a nossa, certamente o MMA (e semelhantes) terá uma enorme popularidade (com grandes lucros, é claro), confirmando a idéia que  o desenvolvimento de uma pessoa, comunidade ou espécie não significa sempre passos à frente. E como o aumento do número de praticantes com lesões físicas e mentais não terá a mesma publicidade que os bizarros e sanguinolentos combates, teremos também que entrar no coliseu e lutar! Usando a cabeça, lutaremos contra a falta de informação, a desinformação e a tentativa de tornar natural comportamentos arcaicos e desnecessários que, como dito no dia 11/03 (“Cutucando a onça com vara curta”), precisam ser sublimados e não estimulados.

segunda-feira, 19 de março de 2012

Vivenciar, compartilhar e reutilizar

     A cada minuto, milhões de pessoas postam suas vidas - ou o que gostariam que fosse – nas redes sociais on line (Facebook, Orkut, Twitter, Msn, etc); são imagens, mensagens, notícias, piadas, banalidades, demonstrando uma necessidade que vem crescendo na mesma proporção que o uso da internet: a de compartilhar. Dividir com alguém sua rotina, diversões, viagens, projetos, reflexões e aspirações, numa busca de interação, acredito. Os meus traços autísticos não me tornam um frequentador assíduo das redes  virtuais, mas eventualmente tenho boas surpresas quando me aventuro por estas áreas.
      Há dois anos, pelo Orkut, localizei amigas da minha adolescência que não tinha contato há mais de vinte anos. On-line, foi possível me reaproximar de pessoas que as circunstâncias da vida dificilmente fariam reencontrá-las, pois uma estava morando no Rio de Janeiro e outra na Índia. Reencontrei também lembranças agradáveis do científico - para os mais jovens, ensino médio - com os colegas, as festas, viagens e campeonatos de handebol (lembrei também dos momentos de estudo, busca de informações, entretenimento - bem menos que os da nova geração -,  e dos treinamentos esportivos, responsabilidades em casa, disciplina familiar - bem mais que os de hoje).
      Ontem minha esposa - esta sim, frequentadora de carteirinha do Facebook - comentou que uma colega de faculdade teria retornado a Maceió e publicado algumas fotos daquele tempo (expressão verbal de quem já dá indícios de envelhecimento). Ao vê-las, mais uma vez fui tomado por recordações da juventude, iniciando o curso de psicologia - entre 1990 a 1994. Não faltava descontração, disposição física, curiosidade e vontade de conhecer coisas novas (poucas, para ser mais preciso). Fiquei surpreso em identificar colegas da turma que já não mais lembrava. Apesar das fotografias serem antigas, o entusiasmo e a alegria envernizavam os nossos rostos juvenis, desprovidos ainda das marcas e rugas dos anos. Por alguns instantes voltei no tempo, visitando alguns lugares e vivendo novamente certas situações. Como diz meu filho, "foi massa!" Percebi então que a vivência de ocasiões prazerosas tem duas imensas utilidades: no presente, quando experienciamos e nos deleitamos com o momento, e no futuro, quando recuperamos a lembrança e novamente vivenciamos aquelas emoções.
      Continuando no túnel do tempo, fui navegando para o futuro, construindo o cenário dos meus 80 anos - em 2049 -, a partir dos depoimentos dos idosos conhecidos (pais, pacientes). Torcendo para que até lá uma bala perdida não me encontre, assim como um alcoolizado no volante ou uma doença preocupante, fiquei imaginando situações que gostarei de lembrar na terceira idade. Como o desenvolvimento  e encaminhamento dos filhos e familiares, recordações de lugares exóticos visitados, trechos de postagens do blog, fisionomias e nomes dos colegas, características da mente humana e, principalmente, o que fiz no dia anterior (senão posso estar com Alzheimer e aí não há presente ou passado que se sustente).
       Enquanto isso, que nas próximas décadas eu possa construir um patrimônio de recordações de boa qualidade, reservas de momentos gratificantes, para serem utilizadas nos instantes de abatimento, e que as redes sociais promovam mais encontros genuínos, entrelacem  pessoas e recuperem experiências esquecidas. Mas sempre ligado que, antes de compartilhar, é preciso vivenciar.

domingo, 11 de março de 2012

Cutucando a onça com vara curta

       No final da manhã dia 29 de fevereiro, quarta-feira, precisamente às 11:30h, recebi um telefonema da minha esposa: com a voz embargada, disse que tinha sido assaltada naquele momento, na entrada do banco, e que eu fosse imediatamente para lá. No trajeto, aprisionado entre um semáforo e outro, tentava imaginar a situação ocorrida com ela, lembrando de outros episódios ocorridos com familiares e amigos. Ao entrar na agência, encontrei Adriana sentada na cadeira, angustiada, com a gerente ao lado confortando-a e tomando algumas providências - bloqueando os cartões, sustando os cheques. Outras pessoas em volta, solidários, lamentavam mais um assalto a mão armada e criticavam a falta de segurança em nosso estado (embora o desenvolvimento das grandes cidades - infraestrutura, maior oferta de serviços e empregos - demore décadas para iniciar, suas mazelas chegaram rapidamente). Quando saímos, passando pela cena do crime e conversando com algumas testemunhas, comecei a vivenciar emoções e pensamentos bem pouco civilizados, perdendo a tranquilidade no resto do dia.
       Uma semana depois, durante a entrevista inicial de uma avaliação neuropsicológica, os pais de um paciente relataram, após se queixarem do prejuízo escolar do garoto, que a residência deles havia sido invadida por três indivíduos fortemente armados. Por várias horas ficaram sob a mira de pistolas - mãe, pai, filho - sendo ameaçados de morte constantemente. Embora não seja delegado nem trabalhe num ambiente policial, não é raro que assaltos, furtos e assassinatos sejam comentados pelos pais e pacientes nas consultas, misturando-se às queixas de dificuldades de atenção ou de memória. Se acrescentar as notícias diariamente divulgadas pela imprensa, tendo a violência como arma principal, chegarei facilmente a conclusão que estamos vivendo novamente num ambiente selvagem, como há milhares de anos. Cada vez mais amedrontados, desconfiados e ansiosos, estamos perdendo gradativamente o direito de ir e vir; nossos filhos estão trancafiados em apartamentos, casas eletrificadas ou televisionadas; forçosamente temos que aumentar os gastos com serviços e equipamentos de segurança e, acima de tudo, somos obrigados a conviver com uma intensa e patológica sensação de insegurança.
       Como se não bastasse, este estado psicológico implica em intensas alterações hormonais e de neurotransmissores que, se prolongadas, resultam ou intensificam doenças (hipertensão, diabetes, acidente vascular encefálico, cancer, gastrite, dermatite, dores em geral) e transtornos (ansiedade, humor, stress pós-traumático). Além disso, desperta tendências comportamentais bizarras, utilizadas nos primórdios da humanidade. A agressividade é tão antiga no ser humano quanto o seu cérebro, e foi essencial na sobrevivência da espécie num ambiente hostil; ambos têm uma longa história de mudanças e adaptações, mas a tendência animalesca continua potencialmente presente em cada um de nós. Existem áreas e redes neurais relacionadas com a brutalidade das nossas condutas: giros temporais e o sistema límbico, região presente nos mamíferos em geral, onde são processadas as emoções e formada pelo tálamo, hipotálamo, hipocampo, amígdala e giro do cíngulo. São estruturas como a amígadala, sentinela cerebral que confere conteúdo emocional aos estímulos captados - classificando-os como perigosos ou não -, e o hipotálamo, responsável também pela expressão e manifestação somática da emoção. A visão de uma pessoa desconhecida, a percepção de que se trata de um assaltante, a sensação de medo, o aumento dos batimentos cardíacos e as reações de lutar, fugir ou fingir-se de morto acontecem em segundos, nessa área profunda do sistema nervoso, antes mesmo que possamos refletir sobre o assunto (fenômeno que envolve principalmente o córtex cerebral, cujo trajeto neuronal é mais longo e, consequentemente, mais lento).
       O problema é que o sistema límbico foi desenvolvido para um contexto primitivo, perigoso, desprovido de linguagem verbal e de princípios éticos, com relações interpessoais provavelmente pouco cordiais. Permitir que nas esquinas, ônibus, metrôs, morros e residências prolifere a insegurança e o medo é atiçar tendências que devem ser sublimadas. A História está repleta de períodos de intensa violência e crueldade, praticada isolada ou coletivamente - o holocausto na segunda guerra, atentados terroristas, matança atual de civis na Síria,  tortura e morte do ex ditador da Líbia, Muamar Kadafi, e os milhares de homicídios praticados em Alagoas nos últimos anos.
       Precisamos urgentemente reagir de alguma forma, senão cedo ou tarde seremos vítimas ou agressores! E pouco adianta blindar veículos, comprar equipamentos com alta tecnologia, contratar seguranças 24h, ter direito a proteção policial, pois o predador tem tempo e sempre aguarda um momento de descuido da presa ou do filhote que, em algum momento, acontecerá. Poderíamos então utilizar uma outra área cerebral, o córtex, em especial as áreas pré frontais (região essencialmente humana), para reconhecer o problema, identificar as possíveis causas do aumento da criminalidade - como a também primitiva e desenfreada sede de poder presente na maioria dos nossos políticos, semelhante à dos macacos, lobos e leões -, com o objetivo de planejar  e executar estratégias (aprimorar os critérios de escolha dos nossos representantes e monitorá-los sistematicamente, preferir açoes coletivas às individuais, provocar as secretarias de estado, Ministério Público, OAB, imprensa nacional e internacional, etc). Nos últimos milênios o homem vem adquirindo conhecimentos, criando novas tecnologias e transformando o mundo. Está na  hora de priorizar as mudanças no meio interno, abandonando tendências desnecessárias e inadequadas. Mas, para isto, temos que deixar o bicho quieto!

domingo, 4 de março de 2012

Os novos desafios da escola

      Com o objetivo de desenvolver umas considerações sobre os transtornos que comprometem a aprendizagem apresentei, ontem pela manhã, uma palestra no Colégio Santa Madalena Sofia, refletindo também sobre as implicações na dinâmica educacional. Numa agradável surpresa, encontrei um auditório repleto de professores - do ensino infantil ao médio - ávidos em discutir o tema, participando ativamente do encontro, não só na compreensão das informações, mas também questionando e relatando suas experiências em sala de aula. Nunca é demais destacar que a aprendizagem é um fenômeno complexo, onde distintas variáveis interferem: orgânico, com destaque para o adequado amadurecimento e funcionamento das redes neurais; cognitivo, com a participação coletiva das faculdades mentais, como a inteligência; motivacional, caracterizando o desejo e a atitude do estudante em direção ao conhecimento;  social, das influências mútuas nem sempre explícitas; e pedagógico, com o modelo teórico utilizado pela escola, bem como a relação desenvolvida com o professor. Apesar do potencial intelectual, interesse pela aprendizagem, aparente contexto familiar e social favoráveis, bem como um ambiente escolar propício, têm alunos que demonstram comprometimento significativo para aprender.
         Há 30 anos, acredito que estes alunos só tinham três possibilidades de diagnóstico: inteligente, doente mental (e não deficiente) e preguiçoso. Ou seja, se o garoto era esperto para conversar, brincar e desenvolver outras atividades, mas não conseguia aprender, era preguiçoso! Era a lei do tudo ou nada. O tratamento incluía humilhações de alguns professores, "perda de pontos" (diminuição quantitativa nas avaliações antes mesmo de tê-las realizado) e reclamações frequentes aos pais. Se formos um pouco mais atrás encontraremos punições ainda mais severas: palmatória, ajoelhar-se no milho, ficar no canto da sala, em pé, bem próximo da parede, escrever inúmeras vezes frases pouco estimuladoras no quadro ou no caderno, dentre outras. Já nos últimos tempos o comportamento humano, seja no aspecto cognitivo, moral, afetivo vem sendo compreendido num espectro, numa decomposição gradativa de níveis de intensidade, que vai desde o retardo mental, por exemplo, até indivíduos com altas habilidades (antes chamados de superdotados).
         Na capacidade de priorizar estímulos e manter-se numa atividade (atenção concentrada) também temos um contínuo de possibilidades, desde aqueles que são hiper focados, até os que têm intenso prejuízo no controle de estímulos irrelevantes, principalmente quando desenvolvendo atividade que exige esforço mental prolongado. Do mesmo modo, podemos caracterizar a habilidade de ler, escrever, calcular, realizar movimentos coordenados e lidar com as emoções. A maioria das pessoas apresenta desempenho na parte intermediária do espectro, estando nos pólos aqueles que fogem da norma, seja para mais (altas habilidades) ou para menos (deficitárias). Os transtornos correspondem à performance significativamente abaixo do esperado: dislexia (para a leitura), Transtorno do Déficit de Atenção/Hiperatividade (para a atenção), Discalculia (para o cálculo), Disgrafia (para a escrita), Transtornos Afetivos (para a inteligência emocional). Estes transtornos podem existir isoladamente (apenas dislexia) ou comorbidades (dislexia e disgrafia, TDA/H e discalculia, disgrafia, discalculia e depressão). Diferentemente da dificuldade de aprendizagem, que é circunstancial (motivacional e ambiental), o transtorno - ou distúrbio - corresponde a uma disfunção no sistema nervoso central e resulta numa grande desvantagem para estudante, podendo ocasionar não só comprometimento na vida acadêmica, mas também no desenvolvimento profissional, afetivo e social.
      Além do diagnóstico e tratamento multiprofissional (médico, psicólogo, fonoaudiólogo), é essencial que a família e a escola também participem ativamente, com adaptações e modificações. Um ambiente familiar afetuoso, organizado, ritualizado e com monitoramento sistemático potencializa e mantém os ganhos do tratamento. Na escola, antes de qualquer alteração na estratégia de exposição e avaliação utilizada pelo professor, é decisivo que compreenda e aceite que o aluno com transtorno tem realmente uma desvantagem em relação aos demais.
           Ao final da calorosa e inquietante conversa que tivemos no auditório, com muitas perguntas e algumas respostas, ficou claro que além das informações - sintomas, diagnóstico, tratamento, intervenções - precisamos realmente aprender a aceitar e tolerar as limitações, sejam nossas ou dos outros, com as suas consequências. Procurar considerar o sofrimento da família e, principalmente, do estudante é semear a possibilidade de uma nova atitude, para duas novas pessoas - o educando e o educador. 

domingo, 26 de fevereiro de 2012

A rotina nossa de cada dia...

     Acordar, escovar os dentes, tomar banho, trocar de roupa, tomar café, usar um transporte (carro, ônibus, metrô),  estudar (trabalhar ou outras providências), usar novamente o transporte, almoçar, estudar (trabalhar ou outras providências), mais um transporte, retornar para casa, trocar de roupa, tomar banho, jantar, desenvolver uma leitura, ver tv e, finalmente dormir. Não sendo necessariamente nesta sequência, estas são - dentre outras - tarefas que realizamos diariamente, ao longo de 70, 80 ou 90 anos. Seja  uma criança, adulto ou idoso, temos sempre que ocupar o nosso tempo, na maioria das vezes com as mesmas tarefas, fazendo uso de habilidades cognitivas, como a memória - curta duração (de trabalho) ou longa duração (declarativa, implícita) - e as funções executivas. Mas durante a nossa vida frequentemente reclamamos da monótona repetição dessas atividades - quase insuportável para os adolescentes -, precisando incluir o lazer nos finais de semana, como praia, cinema, passeio, com o objetivo de evitar o stress da rotina diáriar (só Roberto e Erasmo Carlos conseguiram transformar a rotina em algo apaixonante). Além disso, anualmente necessitamos de umas férias, para também amenizarem o cansaço, os aborrecimentos e as preocupações do cotidiano, como mais uma estratégia para modificar a monótona cadência daquelas atividades. Os dias vão se passando, os anos seguindo e somos surpreendidos com as viroses, pequenos acidentes e até cirurgias, abalando a nossa saúde e nos obrigando a permanecer em casa ou no hospital, impedidos temporariamente de realizar o roteiro de sempre. Curiosamente também ficamos ansiosos e estressados nestes períodos, não vendo a hora da rotina retornar. O tempo passa e, à medida que envelhecemos, aumentamos a possibilidade de desenvolvermos quadros demenciais - como Alzheimer - e, com isso, uma progressiva limitação na realização das atividades cotidianas. O déficit na memória, principal prejuízo cognitivo nos quadros degenerativos, começa a comprometer o desempenho funcional, ao ponto de não lembrar de escovar os dentes ou tomar banho, de vestir a mesma roupa após a higiene, esquecer os horários da medicação, programas de tv assistidos, conversas com familiares ou eventos presenciados. Uma filha ou esposa precisam lembrar o idoso que ele não tomou banho naquele dia, que está vestindo uma roupa suja, que não faz muito tempo que seu filho o visitou e que teria lhe falado várias vezes da consulta médica do dia seguinte (se antes o que aprisionava o indivíduo era a rotina, agora é a dificuldade de segui-la; para a saúde, o que a colocava em risco na juventude é indicativo de plenitude, na velhice). Situação complicada para o paciente e familia, não só pelas modificações que serão cada vez mais necessárias no gerenciamento das tarefas (financeiras, controle de medicamentos, saídas de casa), possibilidade de um cuidador profissional,  adaptações físicas na residência (ou até mesmo mudança), mas, principalmente, pelas alterações nas relações, ocasionando sentimentos incômodos para todos. Daí a importância da participação dos que estão ligados legal e afetivamente -  filhos, cônjuge, irmãos, sobrinhos - no diagnóstico e tratamento, bem como no atendimento das necessidades diárias, não só de alimentos, remédios, higiene e consultas, mas também de interação e de bons momentos; de preferência, rotineiros.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

A perda de uma inteligência privilegiada

     Desde o final da minha adolescência vinha escutando suas músicas, inicialmente em disco de vinil e fita K7, depois em cd, DVD e pen drive. Apesar de gostar da música nacional  - Roberto Carlos (preferencialmente as músicas antigas), Djavan, Fagner, Luis Gonzaga, Kid Abelha, Martinho da Vila e vários outros -, a música internacional sempre teve um lugar de destaque nos meus momentos de ouvir um som. Mesmo considerando a histórica e intensa influência da cultura norte-americana no nosso país e, consequentemente, nas nossas preferências, a minha inclinação em escutar faixas numa língua pouco ou até desconhecida – correndo o risco de está perdendo o tempo com uma peça textualmente rudimentar - é também uma necessidade de fazer da música mais um momento de contemplação do que de reflexão: esvaziar a mente e preenchê-la com o arranjo harmônico da voz humana com os instrumentos musicais. A maneira como ela manipulava os sons parecia que estava brincando, com tanta versatilidade e refinamento vocal que poderia até dispensar o acompanhamento e, mesmo assim, hipnotizava quem a escutasse. Numa voz extraordinária, o seu cantar arrepiava - como em "I Will Always Love You" -, modificando as ondas elétricas cerebrais de qualquer um. Era o canto de uma sereia!. Estou falando de Whitney Houston, artista norte-americana falecida no último dia 11, aos 48 anos de idade e sepultada ontem em Nova Jersey (EUA). Uma cantora que  teve a  morte antecipada possivelmente pelos problemas com o uso de drogas - assim como outras milhares de pessoas em todos os continentes, menos famosos, mas também muito queridas pelos seus familiares e amigos. Uma diva da música que espantou os males de milhões de ouvintes com destreza nas cordas vocais, com a sua inteligência particular, mas afogou-se nas próprias dificuldades. Passamos bons momentos juntos e, em vários deles, fui compreendendo (acho) o fenômeno da inteligência - assim também quando acompanhava o desempenho de pessoas no esporte, nas artes, na ciência. Um tema que tem provocado divergências ao longo da história, com entendimentos ora mais ora menos abrangentes  mas, nos  últimos anos, tem se fortalecido na hipótese da existência de inteligências múltiplas (Gardner, 1985): linguística, lógico matemática, cinestésica, interpessoal, intrapessoal e musical. Entretanto, seja com movimentos, números, emoções, palavras ou sons, compreendo que um ato inteligente precisa obrigatoriamente envolver duas etapas: compreensão e manipulação. A compreensão,  com uma ampla e eficiente capacidade de percepção e discriminação de estímulos (visuais, auditivos, táteis, olfativos, gustativos, cinestésicos, emotivos) e a manipulação, com o manuseio criativo destes estímulos, transformando-os num drible desconcertante, na elaboração de um texto emocionante ou na interpretação musical impecável. É improvável que uma pessoa com inteligência cinestésica tenha restrições na percepção das nuances dos movimentos corporais, que um exímio escritor ou jornalista tenha déficit em diferenciar semântica e fonologicamente as palavras ou que uma cantora como Whitney não conseguisse discriminar, explícita ou implicitamente, as notas musicais, com suas oitavas e sustenidos. Não se pode manipular com excelência (e com isso resolver problemas) o  que não é compreendido, discriminado. Mas, como compreender a perda prematura de  W.H. e de outros que contribuíram para o nosso bem estar?  Minha limitada capacidade intelectual não é suficiente para resolver um problema desta dimensão,  restando apenas continuar me deleitando com  suas músicas, e que ela descanse em paz...

sábado, 11 de fevereiro de 2012

Pequenas escolas, melhores oportunidades, grandes cidadãos

      Antes de entrar no lava jato, precisando dá um destino para umas moedas que tanto barulho faziam no carro, parei numa barraquinha de balas e pipocas e ofereci as pratas em troca de cédulas, acreditando que o vendedor teria interesse nelas para facilitar o troco. Estranhei quando ele me respondeu que não queria as moedas (geralmente os comerciantes as procuram), mas impressionado mesmo fiquei quando ele me justificou, respondendo  que não tinha ainda R$ 6,00 (seis reais) para trocar comigo. No caminho, ainda envergonhado com aquela realidade social, trafegando numa rua de casas bem simples, observei outros inúmeros pequenos comerciantes na própria casa, transformando a garagem, a sala ou o jardim num balcão de negócios. Encontrei de tudo: lanches, bebidas alcoólicas, cigarros, gás, água mineral, miudezas, frutas, verduras, entre outras coisas. Porém, mais do que a variedade de produtos oferecidos, o que me chamou atenção foi a quantidade de vendas (local de pequeno comércio) encontradas numa única rua; a concorrência era acirrada! Rapidamente me lembrei das pesquisas do Sebrae sobre a falência prematura de empresas nos primeiros anos, por falta de planejamento, conhecimento do mercado... Fiquei imaginando então a fragilidade destas “empresas caseiras” e, embora desconhecesse os dados estatísticos deste contexto, apostei que a maioria era insustentável economicamente. Com os meus botões, tentei enfatizar o esforço das pessoas em tentar aumentar a renda familiar, mas não foi suficiente para impedir o pesar do provável fracasso comercial de tantas famílias. E pensar que outras pessoas, recebendo indenizações, PDV, empréstimos, FGTS iniciam repentinamente um negócio e, pouco tempo depois, lucram apenas dívidas e frustrações. Não raro a reduzida escolaridade e transtornos cognitivos não diagnosticados também são encontrados neste grupo de trabalhadores. Vale lembrar que as capacidades mentais – inteligências, linguagem, memórias, funções visuoespaciais e executivas – são necessárias não só na resolução de problemas matemáticos e filosóficos na sala de aula, mas também na identificação de problemas, no planejamento, execução e monitoramento das soluções da vida, sendo decisivas no desenvolvimento das relações afetivas, sociais e profissionais. E vai mais além: na edição de fevereiro da Revista Mente e Cérebro, o artigo “inteligência para viver mais” afirma que “quanto mais baixo o nível intelectual de uma pessoa, maior o risco de ela ter uma vida mais curta, desenvolver doenças físicas e mentais e morrer de problemas cardiovasculares, suicídio ou acidente”.  Já nas pesquisas sobre Demência de Alzheimer, não é novidade que a baixa escolaridade é um fator de risco para o desenvolvimento da síndrome. Por isso a escolarização, além de promover justiça social - permitindo um ganho superior aos míseros  R$ 6,00 por meia diária -, é a maior possibilidade de aprimoramento das habilidades mentais e, sua restrição resulta em vulnerabilidades físicas e psicológicas; provoca um grande desperdício de economias e, sobretudo, de potencial humano.
                                                                               


domingo, 29 de janeiro de 2012

2012

    Após trinta dias de férias – também da internet -, estou retornando aos rabiscos, extremamente ansioso com o também retorno do meu filho da imersão nos EUA, por eternos 27 dias. Embora neste período não tenham faltado fatos e questionamentos que pudessem ser transformados em postagens - principalmente a ausência e a saudade de um ente querido -, o contato com a terra, o mar, os nativos e com os animais (entenda-se cavalo) foi providencial, após o final de mais um ano de vida. Hoje, voltando da Barra Nova com o carro abarrotado de roupas, eletrodomésticos e outros apetrechos, cheirando e contemplando o coqueiral e o mangue ao longo da estrada, senti uma agradável sensação de preenchimento. No percurso de despedida, à medida que a rodovia me tingia de verde, crescia o convencimento de que estava pronto para 2012: que venham a rotina e os desafios, as alegrias e as decepções, as lamentações e as comemorações. Mas que eu não perca a cor nos próximos 336 dias, com abundância de pensamentos clorofilados para os novos conhecimentos científicos e acontecimentos do cotidiano que virão. E que, mesmo quando incomodado com algumas novidades (repetidas) do comportamento moderno, as teclas consigam expressar a esperança na humanidade. 

domingo, 25 de dezembro de 2011

Ho, ho, ho não, ui, ui, ui!

     Na cavalgada do papai Noel ocorrida nos povoados de Barra Nova e Massagueira, há sete dias, tive como presente, além do sorriso marcante dos meninos, um edema no joelho, ocasionado por uma forte pancada acidental. Apesar da intensa dor, limitação dos movimentos por uns dias, compressas diárias e tratamento medicamentoso, não houve fratura da patela (osso do joelho), nem lesão nas articulações. A satisfação em promover - junto com outros amigos cavaleiros da região - a alegria das crianças das favelas foi muito mais intensa e anestesiou a dor e a chateação das conseqüências do acidente, estimulando ainda a vontade do grupo no planejamento de novos eventos. No entanto, nos dias seguintes o entusiasmo da participação foi se transformando numa estranha inquietação e provocando questionamentos: qual o efetivo impacto da entrega dos brinquedos na vida dessas pessoas? Por que parece que nos sentimos mais motivados a realizar atos voluntários no natal? Haveria, além do espírito de solidariedade, outros interesses menos altruístas? Seria possível vivenciarmos intensamente o que se define como espírito do natal sem nos incomodarmos com a miséria bem próxima de nós? Precisaríamos do ato voluntário natalino para expurgar algum sentimento de culpa do resto do ano? De que maneira poderíamos ser também solidários em outras situações, nos outros onze meses? Não seria também um ato de solidariedade realizar uma adequada escolha dos candidatos a cargos eletivos (vereador, prefeito, governador, etc)? A indignação, reivindicação e a manifestação diante dos escândalos com a coisa pública também não significaria o espírito de coletividade? E a diminuição do desperdício e do consumo irracional? Afinal de contas, por que a tendência de demonstrarmos, nas festas de fim de ano, comportamentos pouco repetidos durante os outros 335 dias do ano, sejam com os mais pobres, conhecidos e até familiares? Deveria o natal representar não apenas o nascimento de uma nova atitude, mas o aprimoramento e a permanência dela? Decididamente, não me lembro de ter vivido um natal com tantos e significativos incômodos e, apesar do joelho já está praticamente recuperado, algo ainda dói. Ainda bem que tenho um novo ano pela frente, para recuperar e aprender.

domingo, 11 de dezembro de 2011

Self service

      Hoje pela manhã, enquanto a turma dormia, fui ao supermercado fazer umas comprinhas para o café: pão, queijo, frutas, iogurte e achocolatado. Na fila do caixa, enquanto aguardava a minha vez, buscava alguma revista para ajudar a passar o tempo. Normalmente nestes momentos tenho encontrado apenas faces, fofocas, finanças, moda e temas do cotidiano, recheadas principalmente com informações de festas, crimes, tragédias, crises econômicas, denúncias  e corrupção. Mas hoje foi diferente: conheci a primeira edição da revista "por exemplo", vendida nas lojas do Extra, cujo editorial firma o propósito de divulgar experiências que sirvam de exemplo para as pessoas, com dicas e relatos de superação de barreiras e realização de sonhos. Folheando o exemplar fui gostando das matérias, não só pela utilidade e relevância, mas sobretudo pela leveza da publicação. O fato de ter custado R$ 2,50 (dois reais e cinquenta centavos) e o compromisso da doação da arrecadação para projetos sociais colaboraram com a percepção.
      Há algum tempo venho observando, de forma entusiasmada, o  despertar da divulgação progressiva da boa notícia (revista Vida Simples, Programa Ação, etc) - não sendo ela apenas aquela última informação do noticiário, usada como tira gosto. Parece que estamos começando a nos interessar - de modo mais significativo - por informações positivas, de realizações, que nos animem e nos deixem esperançosos. Será que está diminuindo a tendência primitiva do ser humano de privilegiar os acontecimentos trágicos (estratégia    biológica de aumentar a probabilidade de sobrevivência)? Será que estamos tornando a amígdala civilizada (estrutura cerebral antiga e essencial na adaptação do homem numa realidade anterior, mas que ainda policia todos os acontecimentos de forma rápida e as vezes imprecisa, conferindo a conotação afetiva e sendo uma das principais responsáveis pelos transtornos de ansiedade)? Anseio pelo dia que consigamos escolher, assim como os produtos nos supermercados, informações também saudáveis, satisfazendo não apenas a necessidade de ingerir, mas de se alimentar.

domingo, 4 de dezembro de 2011

Refazendo as malas

      Acabamos de chegar de uma viagem de Gravatá (Pernambuco), no Resort Villa Hípica. Com um imenso e bem cuidado gramado, repleto de pássaros, cavalos e vários outros animais, além de manhãs ensolaradas e noites suaves, refeições com novos e diferentes sabores, foram três dias de muitas brincadeiras para as crianças, atividades para a família e momentos para o casal, num ambiente de beleza, harmonia e conforto. Sem falar  das cantorias após o jantar, que eram como cantigas  de ninar, adormecendo gostosamente e nos conduzindo à cama. Sem dúvida foram dias que facilmente serão recordados no futuro, com uma agradável lembrança. Entre os inúmeros hóspedes do resort houve dois grupos que se destacaram: ao chegarmos encontramos uma turma de crianças, provavelmente num passeio de final de ano, acompanhadas dos professores, frequentemente gritando e correndo para cima e para baixo, com uma energia invejável, mas também com um palavreado e maneiras preocupantes. Quando estes foram embora, chegou o grupo de idosos, também bastante entusiasmados e alegres, sempre conversando, dançando, cantando e aproveitando o encontro com os amigos. Foi aí que me lembrei de outros dois grupos de idosos que encontro com certa frequência no consultório: aqueles pacientes que acham que a velhice é uma desgraça, que não tem nada de melhor idade  e que, de lucro, só as dores e problemas, e o outro grupo dos que afirmam da possibilidade de descobertas e novas experiências, da realização de antigas aspirações, da sensação de liberdade e vontade de viver. Mas afinal de contas a velhice é a melhor idade mesmo? Não sendo grande conhecedor dos aspectos subjetivos do envelhecimento, pretendo apenas fazer alguns questionamentos. Sempre vejo pais e responsáveis preocupados com a formação acadêmica de seus queridos, investindo em boas escolas, professores particulares, aulas de línguas, monitorando as amizades dos garotos e, quando necessário, encaminhando-os para psicoterapia e outros tratamentos. Tudo isto para torná-los profissionais competentes, capazes de resolver problemas de maneira eficiente, seja como advogado, médico ou engenheiro. Quando crescem, continuam a incrementar a própria formação técnica, realizando cursos de pós graduação - especialização, mestrado, doutorado. Ou seja, o sucesso na vida adulta depende da formação desenvolvida na infância e adolescência. E no envelhecimento também não seria necessário o desenvolvimento de competências? Quantos, durante a 1a. e 2a. idades, dedicam-se na capacitação para a 3a idade? Quais habilidades são necessárias nesta fase da vida? Diante do que venho acompanhando em pessoas nesta faixa de idade, arrisco-me a dizer que o envelhecimento também necessita de preparação, desenvolvida principalmente nas escolhas realizadas nas primeiras cinco décadas de vida e que poderão resultar na competência física (manter-se ativo e saudável fisicamente, através de uma alimentação adequada e atividade física regular), competência subjetiva (manter-se saudável emocionalmente, aprimorando estratégias para lidar com a frustração, raiva, medo e tristeza, resultantes das realizações - ou não - pessoais e profissionais) e competência existencial (identificar e aperfeiçoar o significado da própria existência, através do aprendizado nas experiências da vida, religião, leituras e reflexões). Fico na expectativa de que estas competências se desenvolvam, esperando intensamente conseguir avançar na velhice como um turista, fotografando os belos momentos, deletando os desnecessários, encontrando algumas coisas e pessoas, afastando-se de outras, mas lembrando sempre que é apenas uma viagem e que, inevitavelmente, retornarei...

domingo, 27 de novembro de 2011

A lembrança da demência

      "Eu não quero continuar vivendo assim; dessa forma não vale a pena viver!" Estas frases foram ditas por um paciente esta semana mas, de alguma forma, continuo a escutá-las. Ele tem 67 anos e vem - há uns dois anos - apresentando mudanças significativas na sua personalidade, com ênfase na impulsividade e agressividade. Discussões frequentes com familiares, amigos e até com estranhos nas ruas, por motivos insignificantes, mas com  intensidade, segundo ele, preocupante - "vontade de agredir qualquer um que me chame de feio". Alterações na alimentação (excesso), dificuldade acentuada para se concentrar e desenvolver leituras também foram mencionadas, assim como limitações recentes em algumas atividades cotidianas (gerenciamento das contas bancárias). Angustiado, disse ainda que a esposa e os familiares não mereciam seu comportamento e que estava evitando situações sociais. Trata-se de uma pessoa com trinta anos de casado - com aparente qualidade -, intelectualmente diferenciada, com alta escolaridade (mestrado), tendo desenvolvida atividade profissional de elevada complexidade, sem histórico psiquiátrico e com uma aposentadoria que incluía frequentes viagens. Na avaliação neuropsicológica seu desempenho cognitivo foi adequado à idade e escolaridade, exceto nas funções executivas (funções relacionadas às regiões anteriores do cérebro - frontais - e que envolvem o planejamento, execução, monitoramento e flexibilidade mental). A disfunção executiva, associada às modificações acentuadas da personalidade e outros sintomas sugerem, segundo as avaliações (médica, neuropsicológica)  uma síndrome demencial - fronto temporal (apesar dos raros momentos de insight). Muito menos frequente que a Demência de Alzheimer, destaca-se  pela preservação inicial das funções cognitivas, mas com mudanças acentuadas no comportamento. Apesar dos avanços científicos no diagnóstico e no tratamento, como toda síndrome demencial, ela também cursa no  comprometimento cognitivo progressivo e irreversível, relacionado com as alterações patológicas que acontecem nos neurônios (formação de placas senis). No final, com a perda neuronal excessiva, evidencia-se uma atrofia cerebral difusa acentuada, com um prejuízo cognitivo devastador, onde a pessoa "esquece" não só as lembranças (episódios da vida, conhecimento acumulado, nome de parentes), mas também as crenças, os hábitos e até os movimentos. Como aquele meu paciente, que vivenciou milhares de momentos alegres e tristes na vida, estudou anos a fio, trabalhou por décadas, criou os filhos e, agora na velhice, provavelmente esquecerá de tudo. A demência aparentemente destrói um dos principais patrimônios (ilusões?) do ser humano:  sua individualidade. O indivíduo perde as características que o tornaram único no mundo, ao ponto dos familiares dizerem: "este não é o meu pai", "ela não é a pessoa com quem casei". E como ainda não podemos evitar ou prevenir a demência, é possível pelo menos ter alguma proteção, monitorando a pressão arterial, realizando atividade física regular, tomando um bom vinho e querendo aprender coisas novas, mas sempre lembrando que desta vida não se leva nada, nada mesmo!

domingo, 20 de novembro de 2011

Contágio social - segunda parte

      Após uma manhã ensolarada, com direito a banho de mar na bela praia do Francês, resolvemos almoçar uma saborosa peixada de arabaiana, acompanhada de uma deliciosa fritada de camarão, à beira da lagoa Mundaú. Ao final,  quando recebemos a conta do garçom, vieram também  alguns confeitos - para os estrangeiros, balas - e começamos a disputá-los, quando um dos amigos levantou a hipótese de que aquela doce oferta teria como objetivo  amenizar uma possível indigestão do pagamento. Nos despedimos, cada um tentando ainda convencer o outro da sua tese sobre as intenções do restaurante com aquele mimo. Chegando em casa, a fim de facilitar o atendimento a outra necessidade, pego uma velha revista Mente e Cérebro e encontro um artigo que me deixou peristáltico: uma pesquisa do psicólogo social David Strohmetz, em 2002 (Nova Jersey), realizada num restaurante, para verificar a relação entre a distribuição de doces com os clientes e o tamanho da gorjeta. Sem muita surpresa, o grupo que foi premiado pelo garçom com um bombom deu gorjeta com um aumento de, em média, 3,3 % em relação aos clientes que não receberam o doce; o segundo grupo que recebeu duas guloseimas aumentou suas gorjetas em  14,1%. No entanto, o interessante foi o crescimento de 23% demonstrado pelas pessoas que receberam um bombom e outro em seguida, após alguns instantes. Com o título "O poder da persuasão", o artigo também relatou a pesquisa de outro psicólogo  - Robert Cialdini (Universidade Estadual do Arizona) -, sobre a influência social, afirmando que tomamos os outros como exemplo quando não temos certeza do que fazer e que valorizamos a opinião dos que estão em posição de poder. Algumas páginas à frente, um estudo descobriu que, "quando um arrecadador de doações mostrava aos moradores uma lista de vizinhos que haviam dado contribuições para uma instituição de caridade, o número de contribuições aumentava significativamente; quando maior a lista, maior o efeito". Algumas dessas tendências já tivemos oportunidade de sentir ou observar em crianças, copiando comportamentos nem sempre adequados de colegas de escola, adolescentes imitando o jeito de vestir e falar de seus ídolos, adultos tomando algumas "decisões" semelhantes às pessoas do seu grupo, seja no vestuário, lazer, compras ou filosofia de vida, e até idosos numa velada disputa pelo ranking de caridades. Não é a toa que restaurantes, hotéis e outros presenteiam seus clientes, que empresas de marketing e propaganda continuam a expor celebridades ou multidões utilizando um produto ou  serviço. Será que somos então uns ratos de laboratório, limitados a fugir de uns estímulos e se aproximar de outros? Ainda acredito que não, e que temos a possibilidade de aprender a realizar algumas escolhas. A ciência, entretanto, tem fornecido evidências de que a capacidade de tomar decisões imparciais é menor que imaginávamos ou gostaríamos (até neurônios especializados em imitar o comportamento de outra pessoa - seja no movimento, na linguagem e nos sentimentos - foram identificados em humanos, denominados neurônios espelho. Estas células, espalhadas em várias regiões do cérebro, são essenciais à aprendizagem). Mas, quem sabe assim - considerando a real, inevitável e nem sempre consciente influência social - poderemos aceitar o confeito do garçom, assistir ao comercial condicionante e ouvir a estratégia do vendedor ou do orador e, com serenidade, aprimorar a liberdade de escolha.

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Proclamação da família

      Desde domingo a imprensa vem divulgando mais um capítulo da terrível realidade social  do Rio de Janeiro, com a ocupação - pela polícia militar - de mais uma monarquia da droga, a Favela da Rocinha. No balanço oficial, apreensão considerável de armas (fuzis, mísseis, submetralhadoras, pistolas, granadas, espingardas), veículos, drogas (maconha, pasta base de cocaína, cocaína refinada, crack, ecstasy), e a descoberta de um  laboratório de refino de cocaína. É o resultado de décadas de omissão do Estado e dominação dos traficantes pela força, insegurança e medo, com o poder soberano de decidir, controlar e punir os moradores da favela . Segundo o secretário de segurança pública carioca existe um plano para o Rio de 40 áreas com UPP (Unidade de Polícia Pacificadora). Ele disse ainda que só na Rocinha serão 900 policiais na UPP. Com bem menos recursos econômicos e vontade política, nosso estado também se destaca quando o assunto é violência, com várias cidades alagoanas nas primeiras colocações no ranking nacional de homicídios por habitantes. A violência, irmanada com as drogas, tem sido uma das maiores preocupações da sociedade brasileira, e os seus cidadãos, como eu, inclinamo-nos a acreditar que a presença de policiais nas ruas amenizaria a situação. No entanto, observando as mudanças que vêm ocorrendo dentro das nossas casas, no ambiente familiar, talvez seja possível inferir uma correlação entre estes grupos sociais. Inicialmente, de maneira lúcida, é interessante considerar o aspecto evolutivo do ser humano, não só na dimensão física, mas também na psicológica. A mente, assim como o corpo, vem se adaptando a mudanças ambientais extremas há milhares de anos, desenvolvendo comportamentos que aumentem a probabilidade de sobrevivência da espécie, como a sexualidade e a agressividade.  Detalhe: o cérebro de que nossos antepassados dispunham há 100 mil anos atrás é praticamente igual ao meu e ao seu. Sendo assim, fisiológica e subjetivamente não faz muita diferença a ansiedade despertada ao andar na savana (há milhares de anos) e apresentar-se numa seleção profissional com outras centenas de pessoas.  Por mais que tenhamos conseguido modificar  a realidade externa, delimitando áreas, construindo cidades e equipamentos com alta tecnologia, manipulando seres, estabelecendo conceitos e regras, a realidade interna é a mesma, com os mesmos objetivos. Não se trata de justificar e se conformar com os atos inadequados a que assistimos diariamente nas ruas e nos noticiários, mas de compreender e aceitar que, de bicho e de gente, todos temos um pouco (alguns têm mais). Da criança com feições angelicais à doce vovozinha, do assassino ao homem santificado, temos todos tendências primitivas de buscar o prazer e agredir quem nos impede. São comportamentos universais (presentes em todo ser humano), mas que variam de intensidade e manifestação de acordo com as outras variáveis do comportamento humano - genética, fatores ambientais, sociais, maturidade. Com o processo da civilização, o homem precisou controlar e direcionar os impulsos agressivos e sexuais, e a família - primeiro grupo social - passou a ter novamente um papel decisivo nessa nova necessidade social. Nos últimos vinte ou trinta anos, entretanto, a família vem sofrendo modificações no seu formato e nas relações entre os membros. Coincidência ou não, a individualidade e a violência também se intensificaram neste período. Sem nenhuma pretensão saudosista, é urgente que consigamos distinguir o essencial do irrelevante na estrutura familiar, para que este ambiente continue a ser a maior possibilidade de aprendizagem do espírito coletivo e da consequente importância do respeito a algumas normas e regras para - como numa república - prevalecer o interesse de todos.

domingo, 6 de novembro de 2011

A excelência está no ar

      Com muita velocidade ele passou com um estrondo sobre a multidão e subiu vertiginosamente até quase a vista não alcançar: parecia um foguete em direção ao infinito; fiquei acompanhando, admirado, pra ver o seu limite e, de repente, ele despencou, dando várias cambalhotas, como se estivesse descontrolado e mais uma vez voltou a cortar os ares bem próximos de nós. Realmente valeu a pena cancelar uma hora do consultório para assistir à apresentação da Esquadrilha da Fumaça nesta terça-feira, 01 de novembro. Tendo como cenário a bela praia da Avenida, presenciamos um grande espetáculo: aviões surgiram de todos os lados, isolados ou em formação - dois, quatro, seis -, escrevendo, desenhando e dançando nos céus de Maceió. Com meu filho e outras centenas de pessoas, ficamos encantados com as proezas dos pilotos e das aeronaves em realizar aquelas  coreografias aéreas, manifestando perícia e ousadia extremas. Foi um final de tarde arretado! No retorno para o consultório não consegui descer das nuvens e, ainda impressionado, lembrei da última apresentação em 2004 e da alegria vivenciada. Mais uma vez me encantei não só com a beleza e a técnica apresentadas mas, sobretudo, pela excelência demonstrada e o bem estar proporcionado a tantas pessoas naquele local. Embora quando se fala nisso lembra-se logo dos esportes, pela fascinação que despertam em milhões de pessoas nos estádios e ginásios na espera do movimento perfeito  - chute, salto ou lançamento -, no ambiente profissional somos também cada vez mais solicitados a aprimorar nossos procedimentos em termos de diagnósticos e resultados para continuarmos empregados. E até no convívio social, condutas que há pouco tempo atrás eram consideradas normais - fumo, bullying, desperdício dos recursos naturais, liderança bruta, autossuficiência, consumo desenfreado - vêm sendo questionadas, modificadas, aperfeiçoadas e globalizadas. É claro que o requinte de um comportamento necessariamente não é sempre construtivo e pode ser direcionado para a destruição, sofrimento e morte (postagem de 11/09 - "Pessoas inteligentes, mas indiferentes?"), mas naqueles minutos que fiquei olhando para o céu acompanhando os ases, senti um grande orgulho de ser humano e bastante estimulado a ser melhor; em desenvolver com perícia e ousadia a minha excelência, para contribuir com o bem estar de algumas pessoas.

domingo, 30 de outubro de 2011

Conhecendo a memória

       "Meu filho tem uma ótima memória, ele lembra de cada coisa"; "não me esqueço do nome das ruas, nem das coisas que leio, por isso não posso dizer que sou esquecido". Afirmações como estas costumam ser ditas como garantias que não há prejuízo  na memorização, mesmo quando algumas atividades diárias, como o estudo e o trabalho estão prejudicadas. E geralmente refletem uma compreensão do funcionamento da mente humana: se uma pessoa tem habilidade para desenvolver uma atividade de forma adequada, consequentemente tem para realizar outras aparentemente semelhantes. É como se cada função mental - memória, inteligência, linguagem, etc - fosse uma unidade,  um monobloco. No entanto os estudos têm demonstrado que o juízo da gente é bem mais complicado e que esses instrumentos cognitivos se manifestam funcionalmente em módulos semi independentes e estão associados preferencialmente a determinadas regiões ou circuitos do cérebro. Em relação à memória, por exemplo, as áreas laterais profundas do encéfalo, próximas às orelhas, chamadas de regiões temporais mesiais, têm um papel decisivo na retenção de novas informações. O fato das funções cognitivas não serem totalmente dependentes umas das outras torna possível um idoso apresentar um déficit na memória com a inteligência e linguagem preservadas (fase inicial da Demência de Alzheimer) e uma criança com retardo mental ter uma satisfatória capacidade de memorização, com a linguagem restrita (espectro autista). Além disso, para uma compreensão um pouco mais detalhada da mente humana, é importante acrescentar que cada modalidade cognitiva é composta por sub modalidades: a habilidade de fixar estímulos e evocá-los ocorre de maneira temporária (memória de curta duração ou de trabalho)  e duradoura (memória de longa duração). Manter mentalmente e por alguns instantes um número do telefone de um conhecido e lembrar dos acontecimentos do último natal, respectivamente, ilustram tais fenômenos. Também podemos ter uma performance satisfatória na memória de longa duração com a de trabalho diminuída. Quando acontece com crianças, favorece à desorganização, lentifica a aprendizagem - leitura, idiomas, problemas matemáticos - e, nos adultos diminui a produtividade, dificulta a execução de algumas atividades diárias e atenua a capacidade de formar novas lembranças. Stress, débito de sono, ansiedade e depressão geralmente são as responsáveis por estas alterações. Mas quando, ao invés da memória de trabalho, a pessoa tem a diminuição ou incapacidade na memória de longa duração (também chamada de memória declarativa) as desvantagens são bem maiores, com prejuízos sociais e  funcionais importantes. E mais uma vez podemos ter duas situações distintas: diante de um acidente com trauma craniano, um paciente não consegue evocar acontecimentos anteriores ao acidente (amnésia retrógrada) e outro indivíduo, num processo neurodegenerativo, não consolida novas lembranças e esquece rapidamente os acontecimentos ocorridos após o problema (amnésia anterógrada). O primeiro não lembra do passado e o segundo não grava o presente. Apesar de existirem vários outros aspectos a considerar sobre esse assunto, eles serão cenas dos próximos capítulos. No momento o importante é que da próxima vez que comentarmos que temos uma boa memorização ou que um filho, pai, mãe ou sogra estão esquecidos, lembremo-nos de que temos vários tipos de memória e que a resolução do problema depende também da identificação de qual está comprometida.